NINA
Nina acabara de ler “Meditações Sobre o Mundo Interior”, de Alceu Amoroso Lima, e ficara recostada ao espaldar da cadeira, como quem precisa urgentemente de um copo d’água. Era sensível como uma flor. As palavras de Tristão de Ataíde tocaram-lhe com dedos tão mornos, que parecia que ia desfalecer. Ela gostava de ler. Tinha o hábito de levar o dedo à boca, e molhá-lo em saliva, no afã de virar à pagina com a primazia de gestos educadamente ensaiados. Literatura para Nina era a liturgia da palavra. Nela se confessava, comungava, e encontrava afago. De vez em quando recorria ao “Aurélio” e decifrava algum vocábulo pouco compreendido. Aliás, o dicionário era seu melhor amigo. Era ele que dizia-lhe o significado de todas as coisas. Depois voltava os olhos para o papel e continuava a ler a Obra da vez. O que sentia ao abrir um livro era quase um orgasmo. Tremia-se toda, sentia uma secura nos lábios, um arrepio nas ancas, depois um prazer célibe que lhe corria o corpo inteiro. Ler era o ato primacial daquela filha de Deus. Lia de tudo. Mas agora, depois de passar por “Estudos — Segunda Série”, “Política”, “Idade, Sexo e Tempo”, “Elementos de Ação Católica”, “Mitos de Nosso Tempo”, “O Problema do Trabalho”, “O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo”, “O Gigantismo Econômico”, “O Humanismo Ameaçado”, “Memórias Improvisadas”, “Os Direitos do Homem e o Homem Sem Direitos”, “Revolução Suicida”, “Tudo é Mistério”, e finalmente, “Meditações Sobre o Mundo Interior”, que acabara de ler, — Alceu Amoroso Lima passara a ser como um pai para ela. Um pai intelectual. Um pai que aconselhava-a através dos livros. Um pai literário. Por conta disso, nunca sentira-se órfã. Alceu era o pai que ela pediu a Deus. Um pai-de-papel.
Depois de quase duas horas petrificada à cadeira, pensando em tudo que Alceu Amoroso Lima lhe dissera nas páginas daquele livro, — despertou. Era muito ensinamento para um livro só. O escritor, de uma genialidade arrebatadora, a conquistara de vez. Com a boca seca, levantou-se, caminhou até o velho filtro de barro, correu a mão em um copo, encheu-o com a mais pura água que se pode conceber, e bebeu. Aquele líquido precioso deixou-a aguada. Parecia um gerânio em flor. Refeita, debruçou-se à janela e ficou mirando o mar de Copacabana. A Avenida Atlântica parada. A praia vazia. A madrugada silenciosa. O coração à bater.
Nina era como o “Bolero” de Maurice Ravel: uniforme e repetitiva. Quem a observasse por um breve instante, a veria comum, como as moças de seu tempo. Mas quem se aproxima-se dela com uma lupa, perceberia que após um crescente progressivo e uma curta modulação em mi maior, o dó maior tomava-a toda, como a sede mergulhada em copo d’água, a oito compassos do fim. Nina era leve como Ida Rubinstein. Nina era uma obra-prima. Nina era o que chamo de “mulher das estrelas”. Nina-moça. Nina-menina. Nina.
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