BOLERO BLUES
Trava-língua de minh’alma:
“Em um ninho de mafagafos tem três mafagafinhos. Quem desmafagafizar os mafagafos, bom desmafagafizador será”.
Toda vez que leio Clarice Lispector é como se alguém abrisse a janela de minh’alma para o sol entrar. E tomado por um ato de Ação de Graças, meu dia acaba se transformando em algo que não sei o nome. Mas é bom. Cheira bem. Ultimamente tenho vivido com Clarice mais perto de mim. Ela brota do meu coração, e ocupa algum lugar da minha mente, onde ali habita um lar. Eu ando por aí com uma casa dentro da minha cabeça. Uma casa imperceptível. Insuspeitável. Minimalista. Casa que ninguém vê. E dentro desta casa habita Clarice. Por isso digo que é uma casa-lar. Sou um leitor voraz. Sempre carrego algum livro na mochila, e quando preciso de aconselhamento, abro-o. Quase todos que leio brotaram da alma de Clarice, pois como já disse, ela é meu porto-seguro.
Um dia desses estava lendo Pablo Neruda e percebi que jamais serei como ele. Escrever para mim é a tentativa de me conhecer melhor. Sei que sou muitos em um só. Tem dias que esbarro com algum desconhecido dentro de mim. Este estranho que sou, e que não sou, diariamente me mostra uma faceta minha, que ainda não conhecia. Às vezes não me reconheço quando olho no espelho. Vejo dois olhos enormes (tipo aqueles do Lobo Mau disfarçado de vovozinha, querendo devorar a Chapeuzinho Vermelho) me olhando, mas não os sinto meus. Embora sejam. É como se tivesse um inquilino querendo fazer usucapião do meu pequeno latifúndio. E eu, que tenho bom coração, deixo-o ficar. É a minha reforma agrária particular. A reforma de um homem só. Mas isso não vale como sinônimo de solidão. Quanto ao inquilino, desde que não me apoquente a ideia, dou-lhe casa, comida e roupa lavada. Este estranho no ninho é meu posseiro. O ninho é meu e a ave sou eu. “Ninho de mafagafos com três mafagafinhos”. E o que é feito do ninho? Sei, não. Não fui eu quem fez: nem a mim nem ao ninho. Muito menos a gleba de terra de minhas cercanias. Pois eu também sou posseiro. Sou inquilino de Deus. Pago aluguel, sabe. Nada aqui me pertence. Quando cheguei o mundo já existia. O que trago comigo é dádiva de Deus. O que levo embora, faz parte de mim, pois sou eu. Portanto, o posseiro de minh’alma toma posse de mim, depois vai embora, como se eu, pobre coitado, fosse solo arenoso em terra fértil.
Eu tenho aprendido a habitar meus desertos. Nos desertos de mim há sempre um oásis. Quase nunca o encontro. Mas quando me lembro onde está, corro até ele, e coloco meu burro na sombra. Contudo, voltando a Pablo Neruda, sei que nunca serei um poeta do cabedal do chileno. Ele é sem sombra de dúvida uma sumidade naquilo que faz. Eu sou um escritorzinho de porta de biblioteca, que mal sabe assinar o próprio nome. Neruda, não. Neruda pertence àquela casta de escritores, que como Clarice Lispector, possuem a genialidade na ponta do lápis. Sem querer ser humilde em excesso, mas sendo, eu uso a intuição e faço dela minha ferramenta. Aliás, é mais simples que isso. A intuição me usa e faz de mim seu serrote. Eu sou como um martelo, um machado, um prego enferrujado. A minha função é única: servir de escada para um projeto maior. E nem me sinto “escritor” de fato. Escritor com ressalvas. Escritor de meia-tigela. Escritor de meia pataca. Sou mais um personagem de alguém que não é deste mundo, que me usa como aquela ferramenta que sou, para este alguém, que de fato não sei quem é, lançar mão do seu ofício. Eu não escrevo: sou escrito. Devo ser o porta-voz de alguém, que pelo fato de não ser de carne e osso, não pode pegar lápis e papel. Aí eu entro. Empresto minha mão, empresto minha mente, empresto meu espírito, empresto meu coração. A isso se dá o nome de inspiração. Deve ser aquele inquilino que mora em mim que me faz dizer essas coisas. Ele é muito exigente, sabe. Ele me obriga a escrever.
Por isso amo tanto Clarice. Clarice Lispector é um anjo em minha vida. Foi ela que apresentou-me a Pablo Neruda, embora nem ela nem ele, saibam direito quem sou. De Pablo aprendi a ser feliz sem angústia. De Clarice aprendi a amar sem sofrer.
P.S. Alceu Amoroso Lima disse uma coisa linda à Clarice, que gostaria de dividir com você:
Clarice argumenta:
— Dr. Alceu, uma vez eu o procurei porque queria aprender do senhor a viver. Eu não sabia e ainda não sei. O senhor me disse coisas altamente emocionantes, que não quero revelar, e disse que eu o procurasse de novo quando precisasse. Pois estou precisando. E queria também que o senhor esclarecesse o que pretendem de mim os meus livros.
Alceu Amoroso Lima, esclarece:
— Você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores, que não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é o personagem maior do autor dos seus romances. E bem sabe que esse autor não é deste mundo…
…
O meu também não é, Dr. Alceu. O meu autor não é deste mundo. Não tenho talento para nada. Mas tenho vocação para viver. Bem sei disso. E sei também de outra coisa. Saber-me instrumento da Obra de alguém, me dá a medida exata de quem sou. Admitir que não sou nada é uma dádiva de Deus. E isso não é nenhum sinal de humildade ou de incompetência. É consciência de mim mesmo. Quando digo que não sou nada, não quero dizer que nada sou. Deus não me criaria para que eu não fosse nada. Pois nada é inútil vindo de Deus. Saber-me pequeno é a minha vitalidade. Nada a ver com decadência ou inércia. O simples fato de estar vivo, seja físico ou espiritual, já é prova de que sou alguma coisa. E sabedor de que tenho Deus aqui dentro, aproximo-me do Todo dentro de Tudo que existe. Deus é Todo e Tudo ao mesmo tempo. E como o Tempo de Deus é outro: Ele é eternidade. Portanto, aprender a saber melhor o que não sei, faz-me entender que nada sei. Mas posso aprender. Aprendo todos os dias. Entretanto, a busca de minh’alma, se há alguma ambição em mim, é apreender o que aprendo. Caso contrário, nada aprendo. Quanto mais sei mais entendo que não sei. Por isso peço licença para agradecer o conselho dado a Clarice, e roubá-lo para mim. Este será o meu delito. Este será também o nosso segredo. Eu me aproprio do que foi dito à Clarice e Clarice me perdoa por isso. Posto que sou humano. Visto que preciso de entendimento. E para não sair pela tangente, já que não sou dado a estrelismos; tímido, distraído, e completamente atrapalhado, assumo que sou uma estrela cadente, que mesmo sabendo que nem estrela é, resigna-se em ser meteoro. Eu não tenho luz própria, mas brilho assim mesmo. Pois Deus é o Sol que ilumina o centro do meu universo. Meteoro também é filho de Deus, não é Dr. Alceu?
Deus te abençoe por isso. A ti e a Clarice. E a Neruda também.
Quanto a mim?
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