RETIRANTES




Ela nasceu no ano da graça de 1822, em meio a efervescência política da monarquia constitucional parlamentarista, do início do século XIX no Império do Brasil. Cresceu no lombo de uma negra. Viveu sessenta e seis anos antes da Abolição da Escravatura, a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio 1888. E a medida que ia amadurecendo, ia ficando perplexa com a ideia de se fazer de um outro ser humano, uma propriedade privada. “Que lugar atrasado é o Brasil!,  – exclamava. Meus Deus!, ainda existem escravos! Que povo é este que faz do seu igual, objeto de carga? Isso é pecado, Senhor! Fazer do homem, lixo, é um despautério. Isto aqui não é um país. É um feudo! Como ignorar o sofrimento de três milhões e seiscentos mil africanos cativos, sendo transportados feito porcos nos navios negreiros? Como não chorar ao chegar a soma de onze milhões e quinhentas mil pessoas vendidas como mercadoria? Como deitar a cabeça no travesseiro e dormir, sabendo que mais gente morreu no translado da África para o Brasil, do que em muita guerra? Esta nação só pode ser amaldiçoada. Um país que trata os seus filhos, e os filhos de seus filhos, como matéria decomposta, não pode vislumbrar a felicidade, sem antes pagar por todos os seus crimes. Gerações e gerações ainda sofrerão o peso da audácia de seus tetravós e bisavós. O brasileiro terá que sofrer muito até que o sangue de todos os inocentes mortos neste país, e a caminho deste, seque no solo debaixo deste chão. Foram derramados rios de sangue durante os trezentos e cinquenta e oito anos, de 1530 a 1888; tempo em que durou esta prática covarde, que favoreceu a comercialização de um filho de Deus. Vindos da África Centro-Ocidental, percorrendo toda a Costa oeste, passando por Cabo Verde, Congo, Quíloa e Zimbábue. De lá vieram os sudaneses (iorubas, gegês e fanti-ashantis; que foram enviados para a Bahia. Os bantus (angola-congoleses e moçambiques; que foram enviados para o Maranhão, Pará, Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo), e os guineanos-sudaneses muçulmanos (fula, mandinga, haussas e tapas; que foram enviados para a Bahia). Por isso sinto-me envergonhada de ter nascido neste país. Sinto vergonha de meus pais, de meus filhos e netos. Sinto vergonha de mim mesma, por carregar na veia o sangue de miseráveis, que fizeram fortuna a custa da exploração do espírito humano. Chamaram o negro de tudo: de sem alma, de sem cérebro, de sem sabedoria, de sem inteligência, de sem corpo, de sem nome, de sem bens próprios, de sem árvore genealógica, de sem história. O negro foi tratado como sub-raça indigente. Podia-se fazer o que queria com ele. Até a Igreja virou as costas, tapou os olhos, e fez de conta que não era com ela. Enquanto o dinheiro entrava aos borbotões, estes imundos fingiam que era a coisa mais natural do mundo, explorar a vida do negro: afinal, segundo eles, ‘aquilo ali nem era gente’. Com que direito um bando de carne podre, que ainda nem morreu e já está fedendo, se acha superior a quem quer que seja? Quem é imoral a ponto de se achar capaz de instaurar o preconceito racial e a exclusão sócio-econômica? Na história deste país nada se fez no sentido de integrar o negro à sociedade brasileira. Este crime é uma dívida histórica que terá que ser paga. Por isso rogo uma praga em todos os que, de um jeito ou de outro, descendem destes marginais. Rogo uma praga sobre mim mesma. Que eu sofra até o último dos meus dias, porque não mereço nada além da mão de Deus, esmagando meus ossos!” – desabafava. 

Assim ela viu chegar a Lei Eusébio de Queirós (1850), a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei Saraiva-Cotegipe (1885), a Lei Áurea (1888), e o fim da escravidão negra no Brasil, observando que o negro fora entregue a própria sorte, sem o menor suporte para caminhar com as próprias pernas. Não tinha acesso à educação, não tinha posses econômicas, não tinha nada. Abriram as portas da senzala e jogaram o “gado” na rua. Era como se a liberdade fosse “presente de grego”. Em meio ao enredo deste massacre, a senhora dos olhos azuis (assim que ela era conhecida), faleceu no dia que deu fim ao regime escravagista brasileiro. Morreu de luto pelos anos nefastos que extinguiram vidas e mais vidas. Ela que era abolicionista confessa, sentiu que não havia nada para comemorar. Aquele era o primeiro dia, dos muitos que viriam, até que o negro, finalmente, deixasse de ser tratado como lixo humano.

Suas últimas palavras foram:

“Ainda dizem que o Brasil é o país do futuro. É patético acreditar que a última nação do mundo a abolir a escravidão, alcance a felicidade aos quarenta e cinco do segundo tempo. Deus me livre desta maldição! Se esta lixeira é o futuro de alguma coisa, não é nela que quero viver”. 

Fez o sinal da cruz, declamou as seis partes de "O Navio Negreiro", escrito por Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) dezenove anos antes (1869), entregou-se a Deus numa prece, calou-se e morreu.








O Navio Negreiro

(Castro Alves)

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
          Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
          E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!



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