SANTA CHUVA
Ela fora abandonada pelo marido com três filhos para criar. O desespero tomou conta daquele espírito. Era o medo. Era a incerteza do amanhã. E embora ninguém saiba como será o futuro, o dela parecia mais improvável do que o dos outros. Naquele instante só pensava em como levaria comida a tantas bocas. Não sabia como sustentar aquela gente. A saída foi respirar fundo, engolir o choro, tomar um copo d’água, fazer a Deus uma prece e ir à luta.
Arrumou emprego em casa de família e de lá começou a tirar o sustento dos seus. Como não podia estar em casa acompanhando o crescimento dos filhos, deixara a responsabilidade a cargo do mais velho. Ao todo eram dois meninos e uma menina. Por sorte a menina era a filha do meio. Já beirava os nove anos de idade. Era ela que cozinhava para os irmãos. Ali também viviam quatro gatos e dois cachorros. Os vira-latas comiam como uns condenados. E embora fossem uns come e dorme de marca maior, protegiam a casa. Portanto precisavam de cuidado e atenção. Assim os anos se passaram sem a menor perspectiva de futuro. O presente era algo tão latente, uma necessidade tão urgente, que aquela gente teve que fazer das tripas coração, para sobreviver às adversidades da vida.
Nos finais de semana ela voltava para casa. Às vezes aparecia no sábado. Em outras só no domingo. Os filhos foram crescendo como um pé de feijão. O mais novo estava até taludinho de tanto que espichara. A menina, que era miudinha, parecia um coqueiro de tão grande que ficara. E o mais velho crescera para os lados, de tanto que comia o moleque. Os cães e os gatos tanbém ficaram redondos. Os pulguentos, coitados, um dia pegaram sarna, de tanto chafurdarem no quintal. Graças a boa vontade de uns e a mão amiga de outros, os bichanos sararam. Por incrível que pareça, todos estavam bem. A separação dos pais foi a união dos filhos. E embora o fujão do marido nunca aparecesse para dar o ar de sua graça, ela ia cumprindo de sol a sol, a bendita missão de transformar aquelas crianças, em espíritos sabedores de que Deus jamais abandona a nenhum de seus filhos.
Quando ela se separara, a sogra havia lhe rogado uma praga. A velha, muito mal humorada, dissera que ela iria parar na sarjeta, tamanho ódio da velha pela vida. Ela ficara com medo, porque ninguém gostaria de viver na miséria, ainda mais com três filhos pequenos: gatos e cachorros como agregados. E embora ela não tivesse parado para pensar um só instante na maldade embutida naquelas palavras, ela trabalhara tanto para cuidar do seu povo, assumira muitíssimas responsabilidades, contorcendo-se como faxineira, babá, diarista, cozinheira, arrumadeira; que mais parecia uma circense. Conseguira cumprir cada tarefa da vida com perfeição milimétrica. Mesmo nos piores momentos, nunca deixara a peteca cair.
Hoje ao descer o morro feliz da vida, deu de cara com a ex sogra. O ex marido estava a empurrar-lhe a cadeira de rodas. A velha parecia abatida: como quem é ferido de morte. Os últimos instantes da velha eram evidentes. Estava claro que não passaria daquele dia. Ao verem-na bela e formosa, com a felicidade estampada nos olhos, admiraram-se. Aquela que fora banida do convívio deles, que arrastara-se pela vida com três filhos, quatro gatos e dois cachorros, não só tinha sobrevivido, como estava muito bem, obrigado. A velha ciente de que aquele era o seu último dia de vida, chamou-a e pediu perdão, dizendo: “Se eu pudesse me ajoelhar, me ajoelharia. Mas como bem podes ver, estou morrendo...”. Mas antes de ir, peço-te perdão. Sei que no passado te roguei uma praga terrível, que prejudicaria não só a ti, mas a meus netos. Naquele dia não me dei conta da crueldade das minhas palavras. Mas Deus é tão bom, que me deixou viver até este dia, para que eu me desse conta do quanto fui tonta. Perdoe-me, minha filha. Pois tenho idade para ser sua mãe”.
Ela, que não tinha ódio no espírito nem rancor no coração, perdoou a velha e foi embora. Com o ex marido não trocou sequer uma palavra. Aquilo era homem ruim: não merecia atenção. O resto da história foi final feliz. Os filhos cresceram, o mais velho tornou-se médico, a menina; advogada, o caçula; diplomata. Os cachorros deram cria. Os gatos se multiplicaram. E assim a vida daquela gente prosperou.
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