AVE MARIA SETANEJA
A um tempo atrás eu fiz um esforço tão grande para não odiar, que acabei descobrindo que amar é possível. Era eu, cercado de sacos pretos de lixo, levando o meu próprio lixo para fora de mim. Era como se tivesse pago o alto preço do Ser. Logo eu, que sou tão pobre, e me sinto tão pouco, vide pois tão pequenino que sou: pagando o alto preço do mundo. Logo eu, que nasci para fazer o bem, fui amaldiçoado por mim mesmo. Eu esperei o pranto e o pranto não veio. Eu e minhas esperas a esperar por mim. O indizível era matéria decomposta a meus pés. Eu pisava na minha própria lama, como um animal tentando se transformar em areia movediça. Sim, eu pisava na minha própria alma, como um espírito tentando se transformar em si mesmo. Eu era o labirinto. Era eu a rua sem saída. Era a urgência premente do gênero. A lógica nessas horas é o que nos salva. Se Deus é matemático, então devo aceitar que faço parte da Sua equação. Em algum lugar dentro de mim deve ter lugar para todas as coisas.
Quanta dor cabe dentro de uma pessoa? Quanto sofrimento cabe no ser humano? O que é altissonante em nós? Naquele instante do meu falecimento, onde a vida parecia escorrer pelas minhas mãos, me senti salvo. Era eu, mais vivo do que nunca, abrindo a porta para a felicidade entrar. Não nasci para sofrer. Não nasci para viver a vida do outro, me conformando em ter outro nome, que não seja o meu. Mas quantos nomes eu tenho? Quantas vidas já vivi? Não espero respostas. Dentro de mim há o silêncio. E é ele que me alimenta de perguntas. O espírito que tenho é tão largo e profundo, que não se contêm em si mesmo. Por isso coloco para fora tudo que há dentro de mim. O meu mundo interno insiste em me mostrar qual é o meu lugar no mundo externo. Um lugar que é meu de direito e que me pertence tão pouco. Se é para jogar pedra em alguém: joguem-na em mim. Se é para enforcar o outro em praça pública: coloquem a corda no meu pescoço. Eu: o cadafalso. Eu: o carrasco. Eu: o condenado. Eu: a guilhotina.
Não admito qualquer tipo de concessão. Não gosto de ver ninguém sendo colocado na berlinda, nem mesmo um santo. Quando vejo alguém dizendo-se acima do bem e do mal, para e rezo: “Perdoa-lhe, meu Pai. Tende misericórdia. Ele não tem visto a Deus.” Acho que a vida é feita de sobriedade. Qualquer coisa que me leve ao escândalo, imediatamente me leva a ruína. Por isso tenho raiva de viver, mas vivo. Sofro em silêncio. Se as coisas andam mal das pernas, respiro fundo e me arrasto pelo chão. Engatinhar é mais digno do que parece. É como ver Deus em cada canto da sala. É varrer a rua com a própria carne. É não ter vergonha de pedir perdão. Viver é como enxergar o que não está lá. Como um cego vê a sua bengala sem precisar tocá-la. Ela faz parte dele. Ela é ele. Sem ela: ele não é nada. Sem ele: ela segue vivendo. Nós precisamos das coisas. As coisas não precisam de nós. Sem uns e outros: estamos sós. Nós que nascemos solitários, seguimos sós pelo mundo. Nós, que aprendemos a amar desde cedo, por um erro matemático, que não tem nada a ver com Deus, acabamos nos esquecendo que amar é o único sentimento, que quanto mais plural torna-se, mais singular se revela.
Eu pensava nessas coisas no momento do esvaziamento de minh’alma. Era eu cercado de minha pobreza, levando os sacos pretos de lixo para fora de mim, e esbarrando sofregamente na minha dor. Mas não sou apenas feito de dor. Também há alegria e desprendimento aqui dentro. Foi aí que descobri que a moral do amar é outra. Foi neste instante que decidi não odiar. Quando alguém me faz o mal, para e penso: “é uma criança... ainda não aprendeu a amar”. Quando sou eu que faço mal ao outro, e como o faço mesmo sem querer, me imagino no lugar dele e choro. Quanta maldade cabe no ser humano? Quanto ódio cabe numa pessoa? Quanto rancor cabe dentro de nós?
Hoje ao abrir o Evangelho Segundo o Espiritismo, no capítulo de número 15, cujo título é “Fora da Caridade não há Salvação”, lá estava Jesus falando comigo. Dissertava sobre “O Maior Mandamento”. Era o menino-Deus de todas as horas manifestando-se em mim. Era o irmão, segundo a vontade do Pai, fazendo para mim a sua pregação matinal. E Jesus, com sua sabedoria milenar, me deu um conselho. Mais do que isso: era um ensinamento. Decidi apreendê-lo e guardá-lo no lugar mais seguro da alma: o coração. E Jesus, o Espírito da Verdade, dizia: “Amareis o Senhor Vosso Deus de todo o vosso coração, de toda a vossa alma, e de todo o vosso espírito. Este é o maior e o primeiro mandamento. E eis o segundo, que lhe é semelhante: Amareis ao vosso próximo como a vós mesmos. Toda a lei e os profetas estão contidos nesses dois mandamentos.”
Mas Jesus, como amar a quem me colocou nesta condição? Como não voar no pescoço de alguém que faz o mal a quem só espera o bem? E aqui nem falo de mim... Sou todo errado. Às vezes me assusto com o meu desfalecimento. Sou despreparado para a vida, Jesus. Tenho tantos defeitos, que quando mato um, o outro renasce. Mas entendo o que me dissestes. Suas palavras caíram-me como uma luva. Enquanto eu me esforçar para não odiar, estarei me odiando. Mas quando eu esquecer a minha dor, e começar a perceber a beleza do outro, estarei no caminho que me levará ao encontro de mim mesmo. Não é a piedade que salva o homem, mas a ação piedosa. Não é a raiva que movimenta o mundo, mas a vontade de mudar o mundo. Eu me alimento disso Jesus. Eu tenho raiva de viver, mas vivo.
O esvaziamento da alma. O estar só consigo mesmo. O lado mítico nosso de cada dia. Desde que descobri que o sobrenatural não existe, tornou-se natural para mim apenas ser. Não nego-me de remexer nos meus vazios. Tenho reentrâncias até no contorno do meu rosto. A alma também tem os seus poços sem fundo. É a aridez interior. É o sertão cá de dentro. O espírito é cheio de curvas e deformidades. Mas também é pródigo de si mesmo. E não há nada melhor nesse mundo do que pertencer a si mesmo. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como se a mim fora, é o mesmo que abençoar o alimento de minh’alma. A gente reza; depois come. A gente olha; depois beija. Assim se atravessa a barreira do som. Assim a gente se liberta do ódio. Assim a gente deixa o amor chegar perto da gente. Só eu que sou uma partícula ínfima de Deus, posso dizer quem Ele é. Todos podemos. Todos temos esse direito. O que peço a Deus é que tenha piedade de mim. Que não me deixe sair deste mundo levando ódio na bagagem. E que não seja piegas a ponto de pedir que na hora da minha morte seja salvo. Porque isso seria a negação de mim mesmo. Eu existo simplesmente. Não sou singular: sou plural. Não sou individual: sou coletivo. Não sou árvore: sou floresta. Quanto mais me conheço, mais me vejo fazendo parte de todas as coisas.
A um tempo atrás eu fiz um esforço tão grande para não odiar, que acabei descobrindo que amar é possível.
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