ÁLIBE
Ana Sales era o pseudônimo. O nome de batismo era Astrud Bittencourt. Mas ela achava-o pouco comercial para a época. “Se fosse no século XIX, quem sabe... Mas agora, em pleno século XXI, sei não...” – murmurava. Assim Ana tornou-se seu nome. Ela assinava-o em letras garrafais: A-N-A. Escrevia em um pequeno jornal da cidade. Era freelancer. Sonhava em ser grande escritora. Gostaria de ter um ‘Pulitzer’ na estante e um best-sellers na Biblioteca Nacional. Desejava entrar para a Academia Brasileira de Letras e tornar-se imortal. Sentar-se-ia na Cadeira que fora de Machado de Assis, a número 23; aquela que ninguém senta, cujo patrono é José de Alencar. Seria a sucessora de Machado, de Jorge Amado, de Zélia Gattai, e de Luiz Paulo Horta. Seria, se não fosse poesia.
Ela adorava os escritores brasileiros. Era doida por Clarice Lispector e Nélida Pigñon. Dos estrangeiros, o único que não gostava era Edgard Allan Poe. Achava-o entediante. Preferia Ernest Hemingway: a quem achava sério, mas engraçado. Era cheia de rituais. Escrevia todas as manhãs com um cigarro entre os dedos. Eram muitos os cigarros. Um dia tentei contá-los, mas perdi as contas. Muitos os cigarros... Um maço e meio para ser exato. Um maço e meio, todas as manhãs, de duas em duas horas, em doses homeopáticas. Se o texto ficava bom, continuava fumando e escrevendo. Caso contrário, abandonava-o a própria sorte. O texto; não os cigarros. Fumava até debaixo do chuveiro. Fumava durante a Missa do Galo. Era a hóstia na língua e o cigarro no canto da boca. O padre achava um horror. Mas deixava. “Melhor receber a benção fumando do que ficar com a alma fritando...” – dizia o padre. E ela lá em jejum... fumando cigarros. Fumava durante as refeições. Fumava fazendo amor. Fumava tanto que trocara os pulmões recentemente. Agora que os pulmões eram novos, – pensava, – podia fumar sossegada.
Não gostava de computador. Computador para ela era o diabo ligado na tomada. “E não me venha com bateria de longa duração, muito menos com Wi-Fi!” – vociferava. Ela, que intitulava-se o ‘diabo de saias’, preferia a boa e velha Olivetti. Era a máquina no colo e o cigarro de filtro amarelo entre os dedos. Um maço e meio, eu disse?! Agora que os ponteiros do relógio marcam pouco mais de meio-dia, já passa do quarto. Fumara cerca de oitenta e cinco cigarros em menos de duas horas. E ela lá em jejum... comendo cigarros. Os dedos amarelados pela nicotina, pareciam que iam quebrar, de tão frágeis; coitados. Dedos enegrecidos pela fumaça impiedosa dos cigarros. Tudo ali fora tingido de amarelo. A folha de papel furta-cor. A máquina de escrever empoeirada. A mesa cheia de cinza. A toalha de mesa queimada. O cinzeiro lotado. As bitucas caídas ao chão. Ali havia: acetato de chumbo, acetona, ácido cianídrico, acroleína, alcatrão, amoníaco, arsênico, benzeno, benzopireno, butano, dicloro-difenil-tricloroetano, dietilnitrosamina, fenol, formol, fósforo, mercúrio, chumbo, cádmio, metanol, metopreno, monóxido de carbono, naftalina, nicotina, níquel, pireno, polônio, terebentina e xileno, dentre as mais de quatro mil e setecentas substâncias tóxicas, cancerígenas e radiativas, contidas na fumaça do cigarro. Era o fumo, o filtro, o papel e a fumaça, transformados em veneno: Cigarro.
“Pausa para um cafezinho. Ok. Melhor voltar a escrever. Deu fome... Melhor comer um Cream craker. Pronto.” Esta era a sua rotina. Todas as manhãs, entre baldes de café e pacotes de cigarro, ela escrevia religiosamente. Eram textos incríveis. Verdadeiras obras de arte. O tempo passou e de fato ela tornou-se um dos maiores escritores brasileiros. Não ganhou o ‘Pulitzer’, mas ganhou o ‘Jabuti’ e o ‘Camões’. Tornou-se uma febre em Portugal. Nenhum de seus livros virou best-sellers no Brasil, mas eram um sucesso nos sebos de todo o país. Não entrou para a ABL, mas a Associação dos Fumantes Inveterados a recebeu de braços abertos. Se fosse erudita, jamais seria Heinrich Schütz. Se fosse popular, nunca seria Argenor de Oliveira. Se fosse romântica, não chegaria aos pés de Casimiro de Abreu. Evidentemente não ocupou a Cadeira 23, não por falta de talento ou de vocação, mas porque aquilo não era para ela. Continuou fumando desbragadamente por mais alguns anos. A quantidade era a mesma: duzentos ao dia. Mas segundo ela, não era bem assim. Como passara a cortar a ponta dos cigarros com uma tesoura, diminuindo assim o tamanho, dizia que cortara o mal pela raiz. Velha e deprimida, mas em tempo algum resignada, parou de fumar. De que lhe serviriam os cigarros a esta altura da vida? “Melhor morrer de tédio do que morrer de câncer” – pensou. E ali mesmo ficou. Era prestativa e generosa, mas odiava perder. Contudo, era dura na queda, feito uma pedra.
O tempo passou um pouco mais, e hoje em dia ninguém se lembra mais dela. Caiu no esquecimento, dura e seca, sem nome ou sobrenome. Como último desejo, pediu que fosse enterrada com um cigarro entre os dedos. A família achou aquilo um exagero. Excêntrico demais para um ato solene. Seu corpo acabou sendo cremado.
No momento de seu sepultamento, deixou de ser Ana, para voltar a ser Bittencourt.
Suas cinzas foram jogadas no pátio da ABL.
P.S.: Não fora imortal durante a vida, mas passara a ser, após a morte.
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