EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ


A vida sob a ótica de um abridor de latas:

Ele era um abridor de latas. Desses que a gente pendura em um prego na cozinha ou guarda na gaveta de talheres. Era recentido, o mísero. Ficava chateado quando usavam-o para descerrar um recipiente feito com folha-de-flandes com salsicha, massa de tomate, ervilha ou milho em conserva dentro. Para ele, que via em si muitas outras utilidades, era uma perda de tempo sair mordendo a face de um flandes, rasgando de ponta a ponta o seu rosto, e ser colocado de volta em um tacha na taipa sem a menor cerimônia.

Ele era um abridor de latas sentimental. Amava João Gilberto, Baden Powell e Vinicius de Moraes. Gostava de imaginar o que há do outro lado da janela: de poder ir lá fora e conhecer o mundo. Mas o seu firmamento era um universo moribundo. Resumia-se à superfície da cozinha. Defronte a ele, na outra parede, morava um espelho. Nele, o abridor se via. Via-se e não gostava do que via. Achava-se estranho demais. Via em si uma peça obsoleta. Houve dia que tentou suicidar-se. Foi quando compraram um abridor de inox. Ele servia para tudo ou quase tudo. Abria latas, garrafas, quebrava nozes, era cortador de pizza, batedor de carne, ralador; igualmente útil para canhoto e para destro; abscindia alumínio e outros metais. E para piorar, era elétrico! Naquele instante sentiu-se incapaz. Eram os novos tempos batendo à porta. Por isso pensou em matar-se, mas não matou-se. Para sua sorte, duas semanas depois seus donos mudaram de casa. E na mudança, esqueceram-no para trás. O que a princípio pareceria uma enorme infelicidade; ficar sozinho em uma casa, — para ele tornou-se um agrado. Ficara ali, preso àquele prego enferrujado, pelo resto da vida. Com o tempo, por ser de folha de ferro estanhada, oxidou e morreu.

Talvez a vida seja um abridor de latas preso a um prego enferrujado. Talvez a vida seja bem mais do que isso. Talvez seja uma música de João Gilberto. Talvez um long-play do Baden Powell. Quiçá, Vinicius de Moraes. 

 

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Comentários

  1. Antônio Pedro da Silva17 de janeiro de 2015 às 06:37

    Barquinn, tem algo em ti que é pura emoção. Há algo em ti que é puro raciocínio. Gosto disso. Por isso sou seu fã.

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