UM RIACHO, UM CAMINHO





Ela era uma mulher sem estudo. Não sabia ler nem escrever. Mas era tão sábia que nenhum doutorado a faria mais inteligente. Possuía aquilo que a gente chama de amor incondicional. Isso mesmo. Era dotada do dom de amar. Tinha um filho só. Um único filho a fazer-lhe companhia nesse mundão de Deus. Nunca vi mãe e filho tão unidos. Aquilo era coisa do Criador. Parecia que se conheciam de algum canto remoto do céu. Era coisa de outras vidas. Se um sorria: o outro sorria. Se um chorava: o outro chorava. Viviam repetindo aquilo que o outro fazia como se a vida fosse o reflexo de um espelho. Eram tão verdadeiros que aquele amor era algo divino. Feito irmãos gêmeos, ou melhor, almas gêmeas, seguiam pela estrada da vida, grudados como cola de sapateiro. E de passo em passo, de salto em salto, permaneciam juntos, porque o tal amor que um nutria pelo outro, era algo de encher riacho. Litros e mais litros de amor. Amor para dar e vender.

Acontece que aquela mãe que lutara de sol a sol para proteger o tesouro de sua alma, um dia recebeu uma notícia triste: o filho havia sido morto por um assaltante. Naquele instante o que era flor: despetalou. O que era sol: virou chuva. O que era mar: o mar secou. Parecia que um dilúvio de proporções interplanetárias havia invadido a Terra. Isso mesmo. Parecia que o mundo ia se acabar. Ela chorou tanto, gritou de tal forma, que causou um pequeno terremoto. Soluçou até o sol se pôr. Aquilo era coisa para um século e meio de pranto. Uma vida inteira era pouco para secar as lágrimas daquela mãe. Ao perceberem tamanho desespero, os vizinhos trouxeram-lhe um copo d’água. Alguém trouxe um banco para que ela pudesse se sentar. Um outro achou melhor levá-la para o quarto. Depois daquela choradeira, ela acalmou-se. Disse que queria ver o filho, acender uma vela, rezar para todos os santos e beber o morto. Uma senhora pôs água no fogo. A outra trouxe o pó de café. E umas duas ou três trouxeram alguns pãezinhos de sal. A mesa posta, todos servidos, ela pôde recostar a cabeça e orar. Apegou-se à prece, conversou com Deus, balbuciou alguma coisa ininteligível, disse outra que não sei o nome, depois apagou num relâmpago. Ficou ali deitada. Estava letárgica. De pranto em pranto, de lágrima em lágrima, entregou-se numa espécie de torpor. Estava anestesiada. Mesmo assim pegou uma coxas de galinha caipira para fritar. O pessoal disse que não precisava, mas ela insistiu. Fez farofa de banana-da-terra, cuscuz de milho verde, ervilhas ensopadas com arroz de coco, bolo de aipim, paçoca de carne seca, beiju, polenta, bolinho de chuva, escondidinho de carne e cabelinho de anjo. Serviu também um pouco de caldo de mocotó com feijão fradinho. Parecia que não tinha caído-lhe a ficha. Enquanto cozinhava no fogão à lenha, do rosto escorria-lhe uma lágrima. Quando o morto chegou, e o morto sempre chega, ela parou o que estava fazendo, secou as mãos no avental, e gritou o nome do filho, como se este pudesse responder. Mandou que largassem o corpo no chão, que daquele momento em diante, o filho era dela. Pediu que fôssemos embora, trancou a porta, fechou a janela, e fez do barraco de palha o seu monastério. Movida pela força de vinte homens, tirou o filho do chão, colocou o corpo em cima da mesa, lavou-lhe a cara, banhou-lhe o ventre, fez-lhe a barba, e vestiu-o como um príncipe. A roupa era velha, mas havia sido engomada com tanto apreço, que parecia novinha em folha. Pôs as mangas puídas para dentro. Depois embrulhou-lhe os pés com uma flanela, dizendo: “Faz frio no céu nesta época do ano. Melhor levar um casaquinho”. Precavida, forrou o caixão com palha e folhas de jornal. “Melhor prevenir do que remediar” – pensou. “Agora que o caixão está quentinho, frio, ele não vai sentir”. Ao agasalhar bastante aquele corpo, que afinal de contas era um pedaço seu, chorou um pouco mais. Aliás; chorou tsunames, maremotos e vendavais. Chorou tanto que chegou a amarrotar a cara do morto. Chorou até ficar com os cabelos brancos. Chorou até dar cãimbra na garganta. Chorou até os joelhos faltarem. Chorou até ir ao chão. Chorou de amargar. Depois recompôs-se, passou um pente no cabelo, vestiu qualquer coisa e abriu a porta.

Lá fora a fila dava volta no quarteirão. O povo ali era muito unido. Todo mundo queria despedir-se do falecido. Beberam o morto, choraram, sorriram, cantaram e dançaram até o sol nascer. O sanfoneiro não parou de tocar um só instante. A zabumba apanhou a noite toda. O triângulo era só melancolia. As carpideiras e ela, foram as únicas que não fizeram nada além de chorar. Quando amanheceu, o cortejo seguiu para o cemitério municipal. Era cova rasa. Mas estava de bom tamanho. Melhor que nada. Quando o padre pediu que Deus recebesse o morto no céu, o caixão desceu e todos foram embora. Mas ela ficou. Ficou ali parada feito árvore seca. “Era morte matada” – pensou. Se fosse morte morrida, eu entendia. Mas isso foi covardia. Coisa mais triste não há”. Aquela mãe podia ter ficado ali uma semana inteira. Podia ter ficado ali um mês completo. Podia ter ficado ali um ano e meio. Podia ter ficado ali a vida toda. Podia até ter criado raízes. Contudo, não sentiria o tempo passar. A dor era tão grande que era como se a tivessem rasgado de ponta a ponta. Mas ela resistiu. Não tinha ódio em seu coração. Nem pela estupidez daquela morte nem pelo homem que tirara a vida do seu único filho. Dizia que quem não perdoa, não tem visto a Deus. Ela via-O todos os dias. Não tinha do que reclamar.

 Uma semana depois do filho ter ido para debaixo da terra, ela recebeu um telegrama do delegado da cidade, dizendo que o assassino havia sido preso. Ela respirou fundo, pegou a bolsa, passou uma água na cara, e saiu. Chegando na delegacia, olhou bem nos olhos do meliante, que àquela altura da vida somava a idade do morto, e disse: “Meu filho, eu lhe perdou”. Você me tirou o pouco que eu tinha. Arrancou de mim a única coisa que coloquei nesse mundo. Ele era o meu rebento. Mas tudo bem... Agora está no céu sob os cuidados de Maria de Nazaré. Mas já que você, rapaz, tirou a vida do meu filho, a partir de agora, eu sou sua mãe.        

Os dois se abraçaram, e enquanto o rapaz pedia perdão de joelhos, ela dizia: “Calma, meu filho, mamãe está aqui”.

Até o dia de sua morte, ela visitou diariamente o assassino do filho na prisão. Matulão no braço, quitute na mão, ela alimentou-o como quem alimenta um anjo. Morrera de luto como era costume nas bandas de lá.

Dizem que ser mãe é padecer no paraíso. Mas ela preferia pensar que ser mãe é tomar conta de um filho de Deus. E já que aquele assassino era o filho que Deus lhe deu, calou-se e obedeceu.

Feliz Dia das Mães.


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