TUDO O QUE VOCÊ QUISER

Há uma moradora de rua na minha rua. Há uma velhinha que palita os dentes com um cortador de unha. Muitos passam por ela, mas não a veem. Olham para ela, mas para eles: lá ela não está. Imagino que ela deve incomodar muita gente. Deve ser horrível ver gente como a gente em situação tão deprimente.  Mas a mim ela não incomoda. Ela é um pedaço de mim que eu gosto. Acho até que ela se parece mais comigo do que eu me pareço com ela.

 Gosto quando ela fala palavrão. Ela grita o nome de alguém, depois manda essa pessoa para lugares nunca dante navegados. Ela parece um poema de Luís Vaz de Camões. Se tivesse que escolher um para ler, escolheria: “Verdes são os Campos”. E se ela quisesse que eu lesse mais um, ofereceria-lhe com todo respeito, tudo que ela tem direito. Mas não sairia da alma de Camões. Daria-lhe o poeta aos borbotões. Entregaria tanto amor para ela, que a deixaria mais bela.      

Dizem que foi empregada doméstica. Contaram-me que quando ficara velha demais para a lida do lar, fora deixada ali pelos patrões: como um pedaço de pano velho; como um trapo que ninguém quer. Aí tomou conta daquela esquina para nunca mais sair. Dedico a ela neste instante, o que minh’alma carrega em si como um diamante: “Enquanto Quis Fortuna que Tivesse”. Espero que o que haja nela: haja também em mim. Espero que o nosso amor nunca chegue ao fim.

“Enquanto quis Fortuna que tivesse

Esperança de algum contentamento,

O gosto de um suave pensamento

Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

Minha escritura a algum juízo isento,

Escureceu-me o engenho co'o tormento,

Para que seus enganos não dissesse

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

A diversas vontades! Quando lerdes

Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

Tereis o entendimento de meus versos”.

(Enquanto Quis Fortuna que Tivesse / Luís de Camões)

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