O MENINO QUE DEVORAVA LIVROS





Ele aprendera a ler observando os letreiros luminosos da cidade grande. Era de uma família muito pobre. Naquela casa não se tinha acesso a livros. Os pais eram analfabetos. A mãe passara a vida fazendo faxina na casa de estranhos. Não havia tempo de limpar a própria alma. Deixara os sonhos escaparem pelas mãos. Não estudou. Não conheceu o mundo das letras. Não viu o arpoador. Havia uma ausência dentro dela que dava pena. Sabia que faltava alguma coisa muito grande em sua vida, mas não sabia o nome. Havia uns pedaços caídos aqui e ali, que às vezes recolhia na esperança de tentar organizá-los. Mas arrumar uma existência de vazios é muito difícil. Para não se aborrecer, buscando respostas a muito perdidas, deixou-se arrastar pela mão do destino, como se o destino tivesse alguma coisa a ver com as escolhas de alguém. Contudo, como é menos doloroso fechar os olhos do que encarar o abismo dos sonhos decaídos, imolou-se como um bezerro de ouro e seguiu vivendo feito uma mortalha ambulante. Essa era a mãe do menino. Uma mulher simples e trabalhadora, que a duras penas colocava comida em casa. Nunca passara fome. Nunca houve um dia em sua vida que não tivesse visto a luz do sol. Se existiam sombras, abanava-as com um catavento. Se a dor era insuportável, levava a mão à boca e fazia pressão até a se acalmar. Quando a dor passava, ela voltava a sorrir como se nada tivesse acontecido. O dia caía. A noite levantava. Era a vida que seguia.

      O primeiro livro que o menino leu foi um romance escrito por Santa Brigida de Batistena, mais conhecida como Santa Brigida da Suécia. O segundo livro que caiu em suas mãos fora um manuscrito de Santa Clara de Montefalco. Lia coisas assim, misteriosas. Coisas que ficavam paradas no canto dos olhos, observando o tempo. Coisas que ocupavam um lugar especial no coração, porque eram tão cheias de emoção, que plainavam entre uma artéria e outra, fixando-se no ventrículo esquerdo. “O Manuscrito do Purgatório”, psicografado pela Irmã Maria da Cruz, foi o terceiro livro que lera. O quarto foi a Bíblia; o quinto “O Livro dos Espíritos”; o sexto a “Torá”; o sétimo o “Alcorão”; o oitavo o “Tripitaka”; o nono foi “Doutrina e Teologia da Umbanda Sagrada”, de Rubens Saraceni; e o décimo, o “Livro da Lei”, da Maçonaria. Era um menino doce. Se continuasse assim, e passasse pela adolescência ainda doce, seria um adulto feito de açúcar e mel.

Um dia sonhou que um anjo trazia-lhe uma enxada muito curta, e dizia-lhe: “Deus dá o corpo conforme a necessidade da alma. O espírito pede, o Criador concede. A vida é uma troca. Uma troca de sentimentos, uma troca de sonhos, uma troca de gentilezas, uma troca de roupa. A alma é a segunda pele do corpo. O corpo é o livro da alma. Onde a alma apreende, estuda, amadurece. Enquanto isso, o espírito que somos fica ali observando, garimpando, juntando experiências, colando-as lado a lado para se fortalecer. O espírito é o templo de Deus. É aquele que o Criador deu livre arbítrio para que aprendesse a caminhar com os próprios pés. Por isso entrego-te esta enxada. Ela tem o cabo curto. Isso quer dizer que terás que fazer esforço dobrado. Se fosse uma enxada com o cabo longo, terias mais conforto ao longo de tua estrada. Conseguirias as coisas de um modo mais fácil. Mas esse não é o objetivo de Deus em tua vida. Ele quer mudar-te. Quer que  aprendas com a dor, que conquistes o amor, que vejas alegria em tudo: até mesmo no dissabor. De tempos em tempos, reaparecerei em teus sonhos, e dar-te-ei conselhos. Terás uma vida digna. Nunca faltar-te-à o básico. Luxo nunca terás. A riqueza deste mundo não é Obra de Deus, mas do homem. Entretanto, terás todas as possibilidades de, ao retornares ao céu, encontrar um palacete moral te esperando. Use a tua enxada com bom senso. Jamais humilhes o teu semelhante. Trate todos com respeito e a sorte habitará a tua casa, fazendo de ti um lar. E lembra-te: Deus é amor”.
Dito isto, o menino acordou, abriu os olhos, deu um largo bocejo e seguiu vivendo. Porque embora não lembrasse do sonho, sabia que alguma coisa dentro de si chamava-lhe para a felicidade. Então com toda a dificuldade do mundo, mas com toda a esperança também, fez da missão que Deus lhe deu o objetivo de sua vida.   

        Começou por devorar uma biblioteca inteira. Havia uma muito pequena no bairro em que morava. Pequena sim, mas suficientemente grande para quem  não tinha nada. Ali havia livros de filosofia, história, teologia, artes plásticas, cinema, literatura, geografia, sociologia, música, antropologia, e ciências exatas. Ali havia um tesouro incalculável de sabedoria. Leu todos. Foi ali que descobriu Michel Foucault, Sócrates, Heráclito de Éfeso, Platão, Aristóteles, Leucipo, Demócrito, Agostinho de Hipona, Boécio, Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo, Roger Bacon, Boaventura de Bagnoregio, Tomás de Aquino, João Duns Escoto, Guilherme de Ockham, Jean Buridan, Avicena, Averrois, Moisés Maimônides, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Bernardino Telesio, Galileu Galilei, Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, René Descartes, Gottfried Leibniz, Baruch Spinoza, John Locke, George Berkeley, David Hume, Jean le Rond d’Alembert, Denis Diderot, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Immanuel Kant, Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Auguste Comte, Karl Marx, Friedrich Engels, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Charles Darwin, Herbert Spencer, Arthur Schopenhauer, Søren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche, Bertrand Russel, George Edward Moore, Ludwig Wittgenstein, Edmund Husserl, Martin Heidegger, Gerd Achenbach, Jean-Paul Sartre, Lúcio Packter, e tantos outros.        

       O menino cresceu avesso ao anti-intelectualismo,
buscando na obra de Lopamudra, Temistocléia, Melissa, Safo de Lesbos, Aristocleia, Theano, Aspásia de Mileto, Diotina de Mantinéia, Asioteia de Filos, Hipárquia de Maroneia, Miriam (Maria, a judia), Hipácia de Alexandria, Hildegarda de Bingen, Heloísa de Paráclito, Akka Mahadevi, Catalina de Siena, Cristina de Pizan, Tereza de Jesus, Louise Labé, Oliva Sabuco, Mary Astell, Maria Gaetana Agnesi, Mary Wollstonecraft, Olímpia de Gouges, Harriet Taylor, Rosa de Luxemburgo, Lou Andreas-Salomé, Edith Stein, Maria Zambrano, Hannah Arendt, Simone de Beauvoir, Simone Weil, Susanne Langer, Ayn Rand, Sarah Kofman, e Julia Kristeva, o Dasein. O Ser-aí ou o Ser-aí-no-mundo era a estrada de sua existência. Na busca pelo autoconhecimento estudou Metafísica e Ontologia, encontrando explicações do ser enquanto ser; na existência, no nada e no ser. Nada mais sartreano que Sartre!  

        Aos poucos o menino afastou-se daquela ideia de que nada podia, nada acontecia. Concluiu que na vida de uma pessoa simples, dita humilde, algo grandioso eclode quando esta descobre os livros. Era como se o universo se descortinasse em camadas de conhecimento. O estudo era de grande valia. Por isso lia tudo que podia. O pai, mesmo sem saber ler e escrever, incentivava-o a ocupar-se das coisas do espírito.
Quando estava triste, pensava em coisas do tipo: “Há tantos livros, mas há tão pouco tempo”,  inspirado por Frank Zappa. Em outras, mergulhava em frases como: “Minha vó sempre dizia que Deus fez as bibliotecas para que as pessoas não tenham desculpas para serem tão estúpidas”, quando sonhava com Joan Bauer.
Ficava horas ouvindo Groucho Marx dizer: “Eu acho a televisão muito educativa. Toda vez que alguém a liga, eu vou para a outra sala e leio um livro”. Quando não, sentia em seu coração as palavras de Jessamyn West, que dizia: “A ficção revela o que a realidade esconde”. E por fim, perdia-se no universo de Heinrich Mann, que falava: “Uma casa sem livros é como uma sala sem  janelas”. 
A propósito, “uma casa cheia de livros é como um jardim cheio de flores”, — sussurrava olhando a si mesmo ao espelho, como se mirasse no fundo dos olhos de Andrew Long.    

         O menino cresceu, e já homem feito, tornou-se escritor. Ali iniciava-se uma trajetória que iria levá-lo para outras paragens d’alma. Tornara-se um viajor equipado com uma bagagem tão imaterial, que a dádiva o acompanharia aonde quer que fosse.


        Assim chega ao fim a nossa história. Mas não sem antes dizer que a vida é um rio sem conclusão de curso. O melhor sempre pode acontecer. Basta acreditar.  
   















































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