HORAS CARIOCAS



Dias de lambe-lambe:

Hoje, arrumando umas gavetas, encontrei a foto do meu pai. Papai era um espírito fantástico. Tinha a alma nos olhos. Era um sujeito de uma sabedoria incomum. O velho era fogo na roupa. Era capaz de dizer coisas, que nem que eu tentasse, conseguiria reproduzir. A foto fora tirada na Quinta da Boa Vista: tradicional parque público no Rio de Janeiro, localizado no bairro de São Cristóvão, onde fora erguido o Paço da Imperial Quinta de São Cristóvão, residência da família imperial brasileira, hoje Museu Nacional. A foto é de binoclinho, muito comum naquela época, feita por um lambe-lambe. Com o tempo, a foto vai esvanecendo, e desaparece. Mas esta está tão nítida, que dá a impressão de ter sido tirada a cinco minutos atrás. Na foto, estou pendurado no ombro de papai, vestindo uma jardineira xadrez. Eu tinha uns seis anos quando fizemos esta foto.

Como dizia, a foto é de lambe-lambe. Fotografia era coisa cara no alvorecer da minha infância. Nem todo mundo tinha máquina fotográfica. Foto era coisa rara. Havia também o custo do filme e da revelação, que onerava demais a arte de fotografar. Uma família pobre como a nossa não podia arcar com tal luxo. Isso mesmo. Naquela época foto era luxo. E pensar que hoje foto faz parte da cesta básica… Viva a classe C! Mas naqueles dias de minha gênese, era mais cômodo, e acessível, contratar os serviços de um fotógrafo de rua. Havia ao menos um em cada bairro. Ficavam pelas praças fotografando nossas vidas. Fotos para documentos nasciam desta forma. Também aquelas que eternizariam os momentos em família surgiam deste modo. O lambe-lambe para a maioria de nós está nos primórdios de nossas histórias particulares. Hoje é tudo muito mais fácil. Com a introdução da tecnologia digital em nossas vidas, qualquer celular barato, é capaz de fazer fotos cada vez mais sofisticadas. Fico imaginando que se o francês, Joseph Nicéphore Niépce, considerado o inventor da fotografia, tivesse em suas mãos em 1826, uma câmera digital, ficaria boquiaberto. Pois tudo hoje acontece em um estalar de dedos. Antigamente, não. Olha eu falando como velho… Mas lá se vão mais de cinquenta anos desde que posamos para esta foto. E põe mais de cinquenta anos nisso Eu sou do tempo do guaraná de rolha e do gravador de rolo. Na minha infância, o século XX era um senhor de barbas brancas; a primeira geração do modernismo era uma coroa enxuta; a Jovem Guarda era uma brasa, mora?; os hippies eram uma tribo prafrentex; a Contracultura era a bola da vez; no futebol ainda estávamos sob o forte impacto do bi-campeonato da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 62; a Inglaterra vence a Copa do Mundo de 66; Pelé faz uma carreira brilhante no Santos; Garrincha joga no Botafogo; Zico era um menino e Ronaldo Fenômeno nem tinha nascido; no Clube do Capitão Aza, na TV Tupi, começava a passar os primeiros desenhos em preto e branco do Speed Racer e os primeiros episódios de Ultraman e Ultraseven; a Ditadura Militar era uma menina malcriada; os anos 60 eram um garoto; e eu, uma criança feliz. A verdade é que estou ficando velho mesmo. Cada dia esses momentos vão desvanecendo na minha parca biografia. E ao mesmo tempo: estão mais vivos do que nunca em minha memória. É como se o tempo, mesmo com pressa, desse um paradinha vez por outro, só para me lembrar de que árvore eu saí. Agora, que sou fruto maduro, sou revisitado pela minha raiz. Como se a vida me dissesse: “Foi daqui que você veio. Jamais esqueça disso”.          

Mas falávamos de papai... Papai era sujeito homem. Daquele que a vida é preto no branco. Movido pela simplicidade do sim, sim, não, não, para ele o certo era certo e o errado era errado. Não era dado ao tal jeitinho brasileiro. Para ele não eram os fins que justificavam os meios. Mas os meios que justificavam os fins. Papai fazia o que tinha que ser feito. Fiel pagador de suas contas, era em suma, um homem honrado. Dizia-me para nunca colocar a mão onde o braço não alcança. Era homem de cautela. Homem de bem. Quando sobrava um dinheirinho, ele nos presenteava com um passeio. Vida dura aquela que vivíamos. Mas era uma vida cheia de amor. E isso nos dava a certeza de que, acontecesse o que acontecesse, desse no que desse, ficaríamos juntos, pois éramos a fortaleza uns dos outros. Mamãe, delicada que só, concordava com tudo que papai dizia. Se o programa era passar o dia na Quinta da Boa Vista, coisa que ela adorava, virava a madrugada preparando quitutes deliciosos. Como boa dona de casa do século passado, mamãe é dada à culinária. Mulher de forno e fogão, sim senhor. Passou grande parte da vida dedicando-se às prendas domésticas. Mulher do lar. Quando virou mãe de família, peso que carrega até hoje nos ombros, passou de extrovertida à tímida, pois dizia que precisava dar bom exemplo ao filho. Até das tais risadinhas que a faziam ruborizar, esqueceu. Tornou-se mulher série, compenetrada, mergulhada em livros de culinária, e entregue à família. Mamãe fala pouco até hoje. Deve ser aquele negócio do sim, sim, não, não do papai, que a fez interiorizar-se. Tudo nela é no diminutivo: vozinha fininha; bonitinha, magrinha, delicadinha. Parece um bibelô chinês. Esta era a casa da minha infância, e de certa forma é até hoje, já que papai se foi, mas graças a Deus mamãe ainda está por aqui, para me ajudar a lembrar quem sou.

Por estas e outras, assim que puder, pego o primeiro avião aqui em Nova York, rumo ao Brasil. E ao desembarcar no Rio de Janeiro, a primeira coisa que quero fazer, é visitar o cenário desta fotografia. Se fechar os olhos agora, consigo sentir o cheiro de mato que tem a Quinta da Boa Vista, ver o trenzinho turístico que circula por lá, o jardim zoológico, a imponente estátua de Dom Pedro II, e tudo mais. Memória é coisa que mexe com a gente  Neste instante me sinto um baú de recordações. E o que mais me marcou foram as últimas palavras de papai, no momento de sua morte, dias depois de termos tirado esta foto. Com a serenidade de um monge, ele me disse: “No decorrer de tua vida, procure não ter inimigos. Mas se os tiver, ame-os. Faça o bem àqueles que te odiarem. Ore por aqueles que te perseguirem. Amar pai e mãe é fácil. Caso contrário, seria um desrespeito às Leis de Deus. E como bem sabemos, Deus não revoga as próprias Leis. Que dirá o homem querer mexer naquilo que Deus fez. Gostar de quem não gosta da gente é que são elas… Portanto, amar os nossos inimigos também é nossa obrigação moral. Pois pertence à Lei Natural. Seja fiel aos princípios cristãos e nada te deterá. Nenhum homem será capaz de te derrubar se tiveres Deus em tuas entranhas. Ame o quanto possível. E se não conseguir, aprenda a viver o impossível. O amor é o único sentimento que brota da alma da gente. E uma última coisa, meu filho: cuida de tua mãe como se fosses eu. E se te sobrar tempo, arrume uma esposa e tenha um caminhão de filhos. Felicidade é coisa que vem de dentro. Nunca reclame da vida. Pois a vida só te dará aquilo que puderes carregar. E antes que eu me vá, deixe-me dizer o quanto te amo. És o que tenho de melhor em minh’alma. És o tesouro do meu coração”.

Após dizer essas coisas, fechou-se como uma rosa em botão, e morreu. Assim foi o dia da nossa temporária despedida, uma semana depois de termos estado na Quinta. Digo temporária, porque ainda iremos nos encontrar. Por enquanto, papai mora em minha memória, e de lá não sairá, até o dia que Deus nos der a honra e a glória de ficarmos juntos para sempre.

A sua benção, meu pai.

Deu te abençoe, meu filho.



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