QUEREM MEU SANGUE / THE HARDER THEY COME
Ele foi colocado para fora da senzala no dia seguinte à promulgação da Lei Imperial n.º 3.353, denominada Lei Área. Naquele 13 de maio de 1888, seu dia fora normal. Acordar de madrugada, arar a terra, plantar, colher, carregar alguns baldes d’água para a lida na lavoura; depois abastecer a Casa Grande com frutas e verduras, voltar para a roça, colher um pouco de cada coisa, descansar enquanto o capataz almoça, comer os restos de feijão deixados no prato de alguém, e voltar a fazer o que sempre fazia: trabalhar. Mas agora, no dia sagrado de sua libertação, estava largado no meio da rua: com a cara e a coragem.
Ele servira aquele senhor por mais de trinta e seis anos. Nasceu naquela fazenda. Por isso sabia de cor cada cômodo daquela propriedade. Tivera a honra de servir o sinhozinho e a sinhazinha de perto. Era cria da casa. Mas com o tempo, velho e cansado, fora colocado na senzala junto com os outros. Hoje em dia é difícil imaginar que alguém tão jovem pudesse estar velho com menos de quarenta anos. Entretanto, a vida era dura; muitos não duravam nem isso. Depois de anos e anos de trabalhos forçados, o corpo falha e a mente perde a força. Não é possível resistir. O que resta é um cansaço infindo, e uma dor sabe-se lá onde, que fica martelando a alma da gente. Aí o indivíduo padece e morre. Morre por dentro, entende? Morre de dentro para fora. A pele murcha, as rugas aparecem, e o que era vitalidade; torna-se um estorvo. A esta altura da vida era nisso que ele se transformara.
Então, naquele 13 de maio de 1888, ele era um homem só. Só de si mesmo. Só do outro também. O que tinha ganho por anos e anos de escravidão não dava para comprar um pedaço de pão. Era mais miserável que o mais miserável dos homens. Ele e seus irmãos. Irmãos de cor. Irmãos de dor. A tão sonhada liberdade não trouxe os louros do paraíso. Agora era cada um por si e Deus por todos.
Com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, ele continuava ali: no meio da rua. Havia conseguido um quartinho em um cortiço, mas fora expulso de lá. Aí a duras penas construiu um barraco no morro. Era um casebrinho que mal cabia uma criança. Este fora o pagamento por serviços prestados aos barões do café e à nação brasileira.
Uns dizem que morreu de tristeza. Outros, que padeceu como um cão sem dono. Minha bisavó, que o conheceu na hora da morte, disse que ele gemeu até o último suspiro. Não era dor do corpo, não. Era a alma que partia. Ao meio.
Negro Forro
(Adão Ventura, — in “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”)
“minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.”
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