PEDACINHOS DO CÉU




Le cœur sur l'asphalte:

Era uma noite de junho. Uma noite de junho. Uma noite de junho. Daquelas noites frias de junho do lado de cá do mundo. Do lado de lá: calor. Porque lá é verão e aqui é inverno. Do outro lado do mundo. Pois, não Era uma noite fria de inverno: quando lá é verão. Aqui: inverno. Lá: verão. Pois, então… Era uma noite de junho. Uma noite de junho. Uma noite de junho. Fazia frio. Eu disse. Aqui: frio. Lá: calor. Então… a chaleira no fogo e algum dinheiro na algibeira. O dinheiro não dava para nada. Fazia frio, eu disse. Precisávamos de lenha. O quintal vazio. A lenha escassa. Cara. O bolso vazio. Na algibeira algum trocado. Algum trocado… algum trocado e mais nada. Acordamos cedo, botamos a água para ferver, cozinhamos uma raíz com gosto de nada, e comemos quietos. Fazia frio. Fazia muito frio na manhã daquele dia, que nesta história, começa de noite. Noite de junho: em pleno inverno. Inverno aqui. Lá: calor.

Passamos o dia ruminando ideias. Eu quis cantar uma canção de amor. De mim só saiu lamento. Pensei na dor que senti quando perdi os meus pais em um acidente de trem. Foi um acontecimento horrível. Só consegui reconhecê-los pela arcada dentária. Um horror. Enfim… meus pais morreram a tanto tempo, e nessa noite fria de junho, passei o dia cantando o lamento em nome do esquecimento. É claro que não me esqueci. Não me esqueci dos dias que antecederam a morte dos meus pais. Muito menos dos dias subsequentes. Eles eram pessoas boas: tidas como gente de bem. Não mereceram aquela morte. Ninguém merece morrer assim… aos pedaços. Enfim… era uma noite de junho. Acordamos cedo. Eu já disse. Mas é preciso repetir, porque acordar cedo é o nosso cotidiano. Repetimos o “acordar cedo” todos os dias das nossas vidas. Acordamos cedo para trabalhar. Acordamos cedo para ir à missa. Acordamos cedo para fazer amor, enquanto as crianças dormem. O mundo dorme quando fazemos amor. É como se o mundo não existisse quando fazemos amor. Fizemos amor hoje… e o faremos todos os dias das nossas vidas. Como acordar cedo. Acordar cedo. Acordar cedo. Repetitivo, sim. É preciso repetir, porque a vida se repete todos os dias. Todo dia alguém nasce. Todo dia alguém morre. Todo dia o mundo faz cocô. Faz cocô. Cocô. Tem que ser dito de novo: faz cocô. Melhor assim… Pois era uma noite de junho. Uma noite fria de junho. Do lado de cá do mundo. Do lado de lá: calor.

Mas como ia dizendo, nasceu um coração no asfalto. Ah, eu não disse isso? Pois bem… digo agora. Nasceu um coração no asfalto, defronte a casa que morávamos. Naquele inverno, eu digo. Onde aqui faz frio e lá faz calor. Naquele inverno de junho brotou no asfalto quente um coração partido. Em frangalhos. Aquele coração estava em frangalhos. Era só cimento e terra. Era areia de riacho e pedra-sabão. Aquele coração, que acima de tudo era orgânico, pulsava em nossas mãos. Um organismo vivo em nossas mãos. Nossas mãos. Nossas mãos. Era tão nítido o som daquele ser pulsando, que dava para ouvi-lo do outro lado do mundo: pum-pum, pum-pum, pum-pum… Qual mundo? Aquele que quando aqui faz frio, lá faz calor. Era um coração feio, meio amarelo; quase nada parecido com um coração de gente. Mais parecia um coração de boi. De boi, se é que coração de boi é amarelo. Se não for, não era de boi. Enfim… aquele coração que brotara defronte de casa era feio. Parecia um coração de boi; amarelo, que pulsava, pulsava, pulsava. Era um coração sem dono. Não pertencia a ninguém, pois nem corpo tinha. Enfim… um coração de boi ou de porco ou de gente: que não tinha corpo. Pois podia ser de qualquer um, mas não era de ninguém.

Depois de nos aquecermos bastante, fomos à rua e pegamos o coração em nossas mãos. Por isso digo que pulsava. Por isso… apenas por isso. Ele estava em nossas mãos. Enfim… era uma noite de junho. Uma noite de junho. Uma noite de junho. Passamos a madrugada com aquele coração nas mãos. Assim: no plural. Passou de mão em mão. Deve ter sido tocado por umas trintas pessoas além de mim. Só eu toquei duas vezes. Imagina os outros… seis ou sete.

No dia seguinte, quando amanheceu, acordamos cedo, e para nossa surpresa, o coração havia parado de bater. Estava morto.




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