DOADOR DE VIDAS
Ele dizia que o amor é uma gaveta que revela muito sobre nós. Todos nós. Algo como um caderno de afetos espalhado sobre a retina. Depois do transplante do coração ficara assim: sensível demais. Tinha a alma à flor da pele, o que deixava-o com os olhos rasos d’água. Sofrera muito. Não gosto de falar da vida alheia, pois posso parecer leviano. Mas preciso dividir essa história com você.
Foram anos de incerteza e solidão àqueles vividos por ele. Ainda muito jovem, quase um menino recém saído das fraldas, descobriu que aquele que batia descompassado em seu peito, ia mal das pernas. “Coração fraco” — diziam os médicos. “Seu coração, meu jovem, tem o compasso de um relógio quebrado, que não marca as horas; atrasa-as” — diziam. A equipe médica era uníssona: “Se ele não fizer um transplante em cinco anos; morre” — falava o cardiologista.
Depois de muito desassossego, séculos na fila de espera, eis que de madrugada o telefone toca, e do outro lado da linha uma voz sintética, sentencia: “Fomos comunicados pela Central de Transplantes que há um órgão compatível com o vosso. O senhor precisa se internar imediatamente. Dirija-se ao Hospital do Coração e aguarde. A vossa cirurgia ocorrerá em poucas horas”. Desligou. Naquele instante, ele pensou: “O dia de amanhã jamais será como o de hoje; como o de ontem não foi igual ao de anteontem. Sou quase um morto-vivo me agarrando a um ponto de esperança pintado à lápis no chão de uma estrada. Mas não me arrependo de ter tentado. Foram anos de muita luta… de muita perda… de muita dissipação. Entretanto, cinco anos da minha vida desperdiçados, jamais. Pois vivi cada dia como se fosse o último. Sim, o último. Porque eu quis que o sofrimento acabasse. Durante esses múltiplos anos, fui jogado daqui para ali, e de lá para cá, como se fosse uma bola de ping-pong às turras com uma raquete de tênis. Era a dor que fere por esmagamento sem cortar. Era a dor e eu: cansados, dilacerados; vendo a vida escapar por entre os dedos, sem forças para abaixar e pegá-la ao chão. E agora me surge essa chance de viver! Alguém morreu, mas manifestou em vida, a vontade de doar todos os seus órgãos. Isso quer dizer que dele, quase nada a terra há de comer. E por conta desse gesto munificente, eu viverei”.
A cirurgia foi um sucesso. Já se passaram mais de quinze anos, desde aquele fatídico dia, que mudou para sempre a vida daquele rapaz. E sensível demais, quando lembra-se disso, chora. Recorda-se todos os dias, diga-se de passagem. Todos os segundos e minutos. Todas as horas. Por isso chora tanto. Não é choro sofrido: é alegria. Ele não tem ideia de quem doou-lhe o coração, mas reza por este todos os dias. Pois sabe, que pessoas generosas são aquelas que por mais que o barco esteja à deriva, nunca perdem a esperança de chegar em terra firme. Mesmo que isso dure uma vida, ou uma eternidade, pouco importa. Pessoas generosas sabem amar sem sentirem-se culpadas. Por isso, pessoas generosas não morrem.
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