CADEIRA VAZIA
A dor era imensa. Havia abandono, esquecimento, tristeza, descontentamento. Havia mau-estar. Havia decepção. Algo difícil de explicar, porque falta ar nos pulmões. Viver assim é como carregar o peso de mil homens nas costas. O calvário diário. A penitência involuntária. O pau de arara. O Gólgota. A crucificação. Dias que se confundem com noites que se confundem com nada. Havia desprezo também. Havia paralisia mental: falta de oxigenação; encefalopatia crônica. Tudo isso sobre os ombros de uma mulher. Uma mulher que ao passar pela sevícia, foi se posicionando no tempo, como um farrapo humano. Envelhecia vertiginosamente a olhos vistos. Um espantalho travestido de gente, caindo como uma pedra jogada de um precipício na direção de um lago. A erosão humana.
Esta mulher que foi tão feliz um dia, aos poucos transformou-se em uma mortalha. Havia fome interior: a desnutrição da alma. Vivia de esmolas sentimentais, que vinham da má vontade de estranhos. Sua vida era juntar as horas em um espalmar de misérias emocionais, que se encrespavam no canto da boca. Era a inópia, a degradação, a pestilência, o roer das unhas. Ao meio-dia, ela implorava por socorro. À meia-noite, escorria à míngua pelo ralo da pia. Uma existência profundamente desprotegida, de certo. Uma biografia voltada ao sentido figurado, que dizia: “Cortaram-me as asas, e eu nem sabia que podia voar”.
Quando jovem, ela conheceu um homem que prometeu-lhe mais do que podia lhe dar. Era um homem bom, mas com a cabeça fora do lugar. Sonhava demais, bebia muito, jogava à beça. Gastava-se todo em uma mesa de poker. Perdia-se inteiro na roleta. Era dado a desvios morais: passava recibo, mas não pagava a conta. Com o transcorrer dos anos, aquela união foi esfarelando. Reduziu-se tanto, que era preciso agachar para enxergar qualquer coisa entre eles. Ela engravidava quase que em um piscar de olhos. Eram tantos filhos, que para quem só sabe parir, todo coito é indecente. Dezoito filhos, sim senhor. Todos do mesmo pai e da mesma mãe. Com o correr das décadas, foi morrendo um a um. A maioria por misantropia. O marido, que era praticamente um erro genético, certo dia saiu, e passado trinta anos, não deu o ar de sua graça. Ela foi ficando isolada, arrastando-se como um farelo de matéria orgânica, horas apegando-se ao desespero, horas jogando-se na frente de um carro. Mas acontece que não conseguia morrer. Morrer não era para ela. Todos morriam por qualquer motivo, mas ela não. Tinha a casca dura. Parecia uma couraça; uma armadura. Era o tipo de gente que cai e não quebra. Entretanto, por dentro era um caco só. Pedaços e mais pedaços de uma alma deprimida. Nem marido nem filho. Nem lá nem cá. Sentia-se como àquele que ao ser expulso de um navio, equilibra-se em uma plataforma de madeira até cansar, e ser engolido pelo mar. Era ela o composto que resulta da ação dos ácidos sobre as bases; composto resultante da substituição de um metal pelo hidrogênio básico dos ácidos. Era ela a substância seca, dura, friável, de sabor acre, solúvel na água e que, ordinariamente, se emprega como tempero. Era ela o cloreto de sódio. Era ela o sal ático. Mesmo parecendo um saco de impureza, era limpa, pura e graciosa: feito água da fonte. Acontece que a esperança fez com que não secasse por dentro. Por mais profunda que fosse a dor, havia o desejo de superação manifestando-se através do genérico das substâncias orgânicas, poliálcoois, com o mínimo de quatro átomos de carbono. Apesar de todo o sofrimento, era doce como açúcar de fécula.
Foi encontrada morta em um barracão de zinco à beira de uma estrada. Uns dizem que morreu de morte morrida. Outros, de morte matada.
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