NOSTALGIA
Dolce far niente:
“Quero ter um quarto só para
mim”, — disse o menino à mãe, enquanto esta varria a casa. Um “lugar só meu…
onde ninguém mais entre. Não quero dividir nada com ninguém. Estou farto de ser
bonzinho!” “Mas meu filho, disse-lhe a mãe, — “por que isso agora?” “Ah, mãe…”,
— o menino respondeu. “Só quero ter a minha intimidade preservada”. “Mas você é
uma criança de cinco anos, meu filho… Não acha que é cedo demais para me dizer
essas coisas? Você quer ficar sozinho, mas e seu pai e eu e seu irmãozinho que
está aqui na barriga da mamãe? Será que nós merecemos viver sem você?” O menino
ficou em silêncio.
A mãe sabia muito bem o que estava
acontecendo. Desde que ficara grávida, o garoto passou a comportar-se mal. Em
um dia não queria ir à escola. Em outro era malcriado com a empregada. Havia
aquele que não respeitava os avós. E em muitos, como este, acordava disposto a
mudar o mundo: começando pelo próprio quarto. O guri sabia que não ia demorar
muito. Logo o irmão nasceria. Aí entre choro de madrugada, fralda, mamadeira e
chupeta, seu mundo seria invadido pelo mais novo morador da casa.
Adeus quarto só para ele. Adeus a liberdade de ler até tarde, apoiando a visão
em um pontinho luminoso que vinha lá da casa do vizinho, para que os pais não
descobrissem que ele lia tanto quanto um adulto que gosta de ler. “Ele está com
ciúme do irmão” — pensou a mãe. Mas logo passa. Assim que ele vir o irmãozinho,
vai ficar todo orgulhoso de ter o caçula para cuidar. Meu Deus… como é difícil
ser mãe… E olha que eu achei que casar é que era complicado… Trabalhar fora, ser boa
esposa, cuidar da casa, ser boa filha, boa, boa, boa… Quando o maiorzinho
nasceu, achei que nunca mais voltaria a dormir. Hoje durmo feito uma pedra. O
mesmo se deu quando me casei. Achei que nunca mais teria um espacinho só meu.
Um canto da casa para sentar, estirar as pernas, abrir um livro, servir-me de
uma taça de vinho do Porto, e relaxar. E eu consigo fazer tudo isso. Sou filha, mulher, mãe,
advogada, dona de casa. Em minha dupla ou tripla jornada de trabalho, ainda
arrumo tempo para ser eu mesma: cuidar do cabelo, pintar as unhas, essas coisas… Agora vem um
novo filho, e junto com ele tudo que uma vida nova; pequena, indefesa, um pedacinho de
gente necessita. Preciso adotar um cachorro. Preciso encher esta casa. Preciso
botar tudo nos eixos. Preciso comprar um jarro de flores. Preciso fazer o
almoço, ligar para a mamãe, ir ao shopping, passar no supermercado, conversar com meu chefe; passar no RH, ver como está a papelada da minha licença
maternidade; visitar a vovó no asilo, levar flores para o vovô no cemitério, comprar um presente para o papai, assistir algum filme do Jean-Luc Godard, ler “The Wolves of Midwinter”, da Anne Rice; ver se meu estoque de fraldas para o bebê é
suficiente para os três primeiros meses; não posso esquecer do baby shower na
casa da minha cunhada; e de estirar as pernas, abrir uma garrafa de suco de uva
e fingir que é vinho do Porto (afinal grávida não pode entregar-se aos prazeres etílicos ), ler um livro e relaxar”.
Enquanto a mãe conversava
consigo mesma, o menino fitava-a. Depois de um certo tempo divagando, ambos
entreolharam-se, e uníssonos disseram: “Quer saber… faça o que quiser!”
Seguiu-se uma gargalhada, um abraço apertado, e um beijo. O garoto entendeu que
não havia nada demais em dividir o quarto com o irmão. E a mãe, ocupadíssima,
terminou de varrer a casa e correu para a cozinha para preparar o almoço. Mais tarde, quem sabe,
iria abrir aquele livro e degustar o prazer de não fazer nada ao lado de uma
garrafa de vinho do Porto, vulgo suco de uva.
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