A GATA BORRALHEIRA



J'attends vos fantastiques histoires écrites dans la langue de Charles Perrault. 
(Betto Barquinn)







L'amour est une arme à double tranchant... Mon Dieu! 
(Betto Barquinn)



Mesmo não sendo um dia ruim, parecia-lhe indígno manter o sorriso nos lábios. A fama repentina tinha lhe dado a resposta para muitas perguntas. Menos para uma: O que fazer com tudo isso? A muito que Cinderella buscava o reconhecimento na profissão de atriz. Gastara até o último tostão para se preparar para o sucesso. Em Paris estrelara Le Petit Chaperon rouge, La Belle au bois dormant, Le Maître chat ou le Chat botté, La Barbe bleue, Le Petit Poucet. E a peça que lhe dera o título de Rainha da França: Cendrillon ou la petite pantoufle de verre. Talentosa que só, ganhara em um ano mais prêmios no teatro, que muitos pensadores em décadas de trabalho árduo. Era boa no que fazia. Convencia o público tão facilmente de que era àquela personagem boazinha, que muitos não saiam vivos quando iam ao camarim, pedir-lhe autógrafos. No palco ela era uma diva. Não havia deus, semi-deus, príncipe encantado ou simples mortal que não se apaixonasse por sua mise en scène. Homens e mulheres dariam a vida se tivessem a chance de serem espancados até a morte por ela. E ela fazia por merecer... Se a personagem era dramática, Cinderella fazia chorar até o mais insensível espectador. Havia pessoas que saíam de maca do teatro. Muitos enfartados, esquêmicos, convulsionados. O público saía de casa pronto para matar ou morrer por Cinderella. Uma apresentação sua era como tirar a sorte grande na roleta russa. Por muitas vezes, vi pararem a apresentação de uma de suas inúmeras peças teatrais, e encerrá-la pela metade. O motivo? Alguém da platéia havia atiado fogo ao próprio corpo e incinerado mais dois ou três, porque acreditava piamente que aquela atriz brilhante, de olhos esmaecidos, era um ser de outro planeta. E aqueles que sobreviviam ao incêndio, voltavam no dia seguinte, ávidos por poderem novamente olhar em seus olhos. Amontoavam-se nos escombros do que um dia fora um teatro, como moscas num pão de mel. Muitos sequer se mexiam quando uma parte do teto, um lustre gigante, um camarote inteiro, ou uma das altíssimas paredes do teatro caía sobre três quartos da platéia, matando-os. E voilà! Todos gritavam: La Cenerentola! Bravo! Bravíssimo! – como se estivessem numa ópera de Gioachino Rossini.






Os cadávares jaziam ali mesmo até o final do espetáculo. Havia quem reclamasse do forte cheiro de putrefação, porque raramente aquilo ali era limpo. Havia restos da platéia da semana passada até na coxia. Mas a audiência ia ao delírio quando Cinderella atirava um braço, uma perna, um dedo, uma orelha, um coração, um crânio, ou qualquer outra parte do corpo, e até mesmo um corpo humano inteiro, do proscênio. Eles aplaudiam de forma ensurdecedora por largos minutos. Lembro-me de ter visto Cinderella ser ovacionada de pé, por uma hora e quarenta e cinco minutos, durante uma apresentação em Paris. Muitos caiam mortos, exaustos de tanto aplaudir. Muitos nem chegavam a ter o privilégio de aplaudí-la, porque eram pisoteados por seus pares, antes disso. E a platéia delirava... Cinderella produzia uma fascinação tão grande nas pessoas, que a audiência se rasgava toda quando ela passava. Nunca se sabia quantos estariam vivos quando a cortina, por fim, se cerrasse. A produção de seus espetáculos pagava fortunas em indenizações, porque muitos parentes dos espectadores mortos, achavam abominável uma pessoa em sã consciência ser convencida a sair de casa, para ir morrer numa platéia de teatro. Mas o lucro de suas produções era tão grande, que a cada indenização paga, a quintessência entrava na caixa registradora. Cinderella tinha o mundo a seus pés. E a prova disso era que essas mesmas pessoas que processavam a companhia teatral num dia, no outro eram levadas à banca rota, ao gastarem o que tinham e o que não tinham, nos espetáculos de Cinderella. A vida sempre segue o seu rumo. Mas para ela era difícil viver com esse sucesso angustiante, cheio de acontecimentos mórbidos.





De fato hoje não era um dia ruím. Mas Cinderella temia por sua própria sorte. Sentia um aperto no peito e uma dor de cabeça que a acompanhava a dias. Não gostava de ser o objeto do sonho de consumo da humanidade. Mas havia se acostumado tanto a toda àquela bajulação mundial, que sentia-se mau quando ninguém morria antes, durante ou depois do espetáculo. E quando sentia-se culpada por desejar a morte dos outros, Cinderella dizia: As pessoas um dia vão morrer mesmo... Ninguém nasce para semente. Então qual o problema de abreviar as suas vidas e reduzí-las a pó de traque, enquanto estiver no palco? Que culpa tenho eu se sou uma ótima atriz? Tão boa, que sou capaz de matar uma platéia inteira do coração, toda vez que esboço um sorriso. Se eles não tivessem nascido, não morreriam, capiche?







Cinderella era uma profissional de ponta. Sabia que centenas de colegas dependiam de seu desempenho nos palcos. Sabia que o elenco precisava pagar as contas. E que os figurões do teatro precisavam de mais um bilhão de euros na conta bancária. Se não fizesse sucesso na apresentação do dia, naquele noite era um por cento a menos no bolso de todos. E isso seria ter a própria imagem borrada no travesseiro. Por isso chorava copiosamente quando o espetáculo terminava sem mortos. Os críticos teatrais não iriam perdoá-la... A mídia não perdoa uma atriz fracassada. Já via a manchete na primeira página dos jornais vespertinos: A estrela caiu! Sabia que seria mais uma noite sem sono. Sabia que teria que repassar todo o texto para ver onde tinha errado. Cinderella levava a profissão a um perfeccionismo tão extremo, que se alguém sobrevivia ao seu espetáculo, tomava toda a culpa para si. Por isso hoje não tinha mesmo motivos para sorrir. Havia duas semanas que ninguém morria na platéia. Um enfarto aqui, outro ali, mas morte que é bom, nada. Sabia que precisava dar um upgrade no espetáculo. Era difícil para Cinderella ser uma alquimista cênica, tendo o peso do mundo em suas costas. Então resolveu arriscar tudo de uma só vez. Prometeu a si mesma que se durante a apresentação de hoje a noite, ninguém morresse, se seus admiradores ousassem sobreviver a sua interpretação magistral, então teriam algo muito sério para se arrepender. Indígnos! – bradava. O que leva um ser humano a ser burro a ponto de não se emocionar até a morte por mim? A falta de cultura desse povo chegou às raias da loucura! A televisão acabou com a cultura desse país! Teledramaturgia é lixo! Eu odeio as telenovelas! Agora o teatro virou o templo dos idiotas! Ninguém sabe o que é talento! Ninguém reconhece mais um Charles Perrault! 






Cinderella respirou fundo e decidiu contra-atacar. Se a platéia não ia até ela, ela iria até a platéia. Prometera fazer uma interpretação tão impecável que iria enfartar até quem passasse pela calçada. Quando a cortina descerrou-se, ela apareceu na boca de cena gritando, chorando, e se contorcendo toda ensanguentada, com um carvão em brasa em uma das mãos e um gato morto na outra. Houve quem se jogasse no fosso do palco. Houve quem chorasse nas frisas. Houve quem caísse no porão. Houve quem saísse do teatro correndo sem passar pelo foyer. Houve quem atravesasse a rua desesperado sem olhar para os lados. Houve quem fosse parar debaixo do caminhão. Houve quem se entupisse de sedativos... Uma senhora à minha direita ameaçou suicidar-se com uma escova de dente. Não fez. Outra na quinta fileira chorava com um canivete entre os dentes. Um senhor de meia idade raspava os pelos pubianos com uma tesoura de cortar frango. Outro, passava uma tesourinha de unha em partes impublicáveis. Um outro à minha esquerda, estava sentado de cócoras, com as partes pudendas à mostra. Uma senhora entrou em trabalho de parto na galeria – enquanto suas amigas se beijavam. Um casal transava tranquilamente ao meu lado – alheio aos acontecimentos. Estavam tão grudados um no outro, que não dava para saber onde começava um e terminava o outro. Tive a impressão de sentir o cara esfregar os testículos no meu rosto. A proximidade entre mim e eles era tão grande, que quando chegaram ao orgasmo, gozei junto. Um homem à minha frente parecia colocar balas de canhão num revólver. Houve quem portasse duas ou três granadas prontas para explodir. Houve quem ficasse paralisado por tanto tempo, que não conseguia mais se mexer. Minhas mãos suavam frio. Peguei o caco de vidro que sempre carrego no bolso, para me proteger, caso fosse preciso. Muitos faziam ali mesmo, sentados ao meu lado, seus testamentos de próprio punho. Padres estremunhados imploravam por extrema unção. Mas ninguém morria. Todos imploravam ao companheiro ao lado que tivesse coragem de atirar a primeira pedra. Um senhor oferecia uma mala de dinheiro para quem aceitasse tomar veneno. Pensei em aceitar... Mas para quê tanto dinheiro se não teria como gastá-lo? Estava na platéia, mas era ator também. Meu trabalho era ficar ali sentado, investigando a reação do público, sob uma perspectiva psicanalítica. Mon Dieu! Não entrei para o teatro para morrer. Entrei para fazer filosofia!





Uma ladainha podia ser ouvida à quilômetros de distância dali. Muitos murmuravam para uma linda jovem: Bebe o veneno, querida! Bebe! Outros riscavam isqueiros na pele de uma  virgem banhada em pacioli. Muitos urinavam-se de nervoso, enquanto outros defecavam. E Cinderella ali... Impassível.







Quando o espetáculo terminou, havia muitos corpos atirados do urdimento ao espaço cênico do Theatro Municipal. Mas nenhum morto. Cinderella olhava-nos com tanto ódio, que quem estava na primeira fila, tremia. Mas entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Quando ela percebeu que nessa noite ninguém se mataria, nem o cara da corrocinha de pipoca, decidiu levar seu plano a diante. Num assalto, arrancou uma das mãos com a força dos próprios dentes, deixando os ossos à mostra. Uma senhora que passava na rua, enfartou. Um ônibus escolar entrou porta a dentro. A bilheteira batia a cabeça na máquina registradora com tanta força, que dava para ouvir o som do seu crânio caindo no chão, a muitas léguas dali. Uma cena tão inacreditável, que se eu não estivesse com seus miolos nas mãos, não acreditaria. O tempo parecia não passar... Mas faltava pouco para o gran finale! De supetão, Cinderella pulou nua na platéia, abraçada a um cachorro-bomba. Em segundos o teatro veio à baixo. Fui o único sobrevivente, porque naquele instante, estava no banheiro tirando os resquícios dos miolos da bilheteira das mãos. Só me lembro de ouvir no alto-falante do teatro, Cinderella dizer: "Saio da vida para entrar na História". E bummmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!





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Comentários

  1. Você é um escritor perfeito. A forma com que lida com as plavras, a precisão de sentimentos, a profusão de idéias... Lindo. Achei o link do seu blog no google. Passei de bobeira só para dar uma olhada. E agora estou aqui, apaixonada pelo seu estilo. Que Deus te ilumine, lindo! Beijocas.

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  2. Caraca! Betto, como vc escreve bem, meu! Me amarrei nesse conto. Vc merece o melhor da vida, amigo. Abs!

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  3. Frederico Buarque de Holanda Ferreira14 de junho de 2010 às 08:59

    Esse conto é de uma extraordinária beleza. Aqui, o seu talento se apresenta de forma magistral. A cada conto seu que leio, percebo em ti uma nobreza, um estilo clássico, um modernismo, somando o rigor literário à literatura contemporânea. Escrever é algo para mim, dificílimo. Você consegue unir princípio, meio e fim com tanto charme, sente prazer em escrever, passa isso para os seus leitores. Seria facílimo adaptar seus textos para o cinema, para o teatro ou para a televisão. Suas palavras possuem imagem e isso faz com que o leitor saboreie cada frase. Muita generosidade sua fazer esse blog. A literatura no Brasil e tão mau interpretada, as pessoas aqui pouco lêem, ninguém valoriza o trabalho de ninguém, qualquer bobagem que venha do exterior parece fazer mais sucesso por aqui do que o talento dos próprios brasileiros, o brasileiro parece que gosta de fazer pouca caso do talento dos outros, e disponibilizar seus textos de forma gratuita, on line, é de uma sagacidade incomensurável. Você é um ser humano dotado desse talento especial. Certamente é um espírito extremamente desenvolvido, que está aqui para uma grande missão. Sucesso, meu querido. Você é 10!

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