BACK TO LIFE
Emergindo
do mar do esquecimento:
“Desenterraram
o Cais do Valongo!” —
gritou o rapaz ao amigo. “É a história de meio milhão de africanos roubados, escravizados e contrabandeados para o Brasil no século XIX (1811 - 1831) vindo à tona” — o
outro respondeu.
O Cais do Valongo
(Fonte / Guia do Estudante / Editora Abril)
"O
Cais do Valongo é um lugar simbólico, porque ali está o passado da população
afrodescendente do país", explica Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Museu
Nacional que supervisiona as obras no porto. "Ele não foi encontrado por
acaso. Desde 2010, sabíamos da existência de um sítio arqueológico naquele lugar".
Havia um totem no local informando que ali existira o Cais da Imperatriz,
também enterrado no início do século 20, dessa vez para a reforma de toda a
região central do Rio. Em nenhuma referência ao Valongo, que recebeu o maior
número de africanos na Américas. Durante as escavações, foram descobertos os
dois ancoradouros, um sobre o outro. Junto a eles, uma grande quantidade de
objetos de uso pessoal, especialmente amuletos e objetos de culto vindos do
Congo, Angola e Moçambique.
"Aquela
região, mais do que o cais, era um complexo de escravos, que incluía o
lazareto, para onde os negros que chegavam doentes iam se curar ou morrer, o
Cemitério dos Pretos Novos e os armazéns de engorda e venda dos escravos, que
se concentravam na Rua do Valongo, atual Rua Camerino", diz Tânia. A área
ia desde a atual Rua Barão de Tefé até a Cidade do Samba, englobando os bairros
da Gamboa, da Saúde e do Santo Cristo.
Até
meados da década de 1770, os escravos desembarcavam na Praia do Peixe, atual
Praça 15, e eram negociados na Rua Direita, hoje Rua 1º de Março. Bem no Centro
do Rio, à vista de moradores e dos estrangeiros que chegavam para conhecer a
colônia. Uma nova legislação, de 1774, estabelecia a transferência desse
mercado para a região do Valongo. Os motivos apresentados eram sanitários:
proteger os cidadãos das doenças trazidas pelos negros. Mas já havia, permeando
a decisão, a sensibilidade de que manter aquele comércio no coração do Rio
maculava sua imagem de cidade europeia.
A
mudança partiu do segundo Marquês de Lavradio, dom Luís de Almeida Portugal
Soares de Alarcão d'Eça e Melo Silva Mascarenhas, vice-rei do Brasil, alarmado
com "o terrível costume de tão logo os pretos desembarcarem no porto
vindos da costa africana, entrarem na cidade através das principais vias públicas,
não apenas carregados de inúmeras doenças, mas nus". Mas ainda não havia o
ancoradouro, e a alternativa encontrada foi desembarcar os escravos na
alfândega e imediatamente enviá-los de bote ao Valongo, de onde saltariam
diretamente na praia.
Em
1779 o comércio de africanos se estabeleceu finalmente na região do Valongo.
Cresceu a cada ano, e viveu seu auge de 1808, com chegada da família real, a
1831, ano em que o comércio de escravos da África para o Brasil passou a ser
feito às escondidas. Só em 1811 o cais foi construído, para que o desembarque
fosse direto no local. "A partir de 1808 o tráfico quase dobra,
acompanhando a cidade que, com a vinda da corte, passa de 15 mil para 30 mil
habitantes. De 1811 a 1831, metade da economia do país, metade do PIB, é movida
a escravos" diz o historiador Carlos Líbano, da Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
É
nesse período de apenas 20 anos que 500 mil africanos - dos 4 milhões que
aqui chegaram até 1850 - entram no Brasil pelo novo ancoradouro. A
distância do Centro não impediu, como gostariam as autoridades, que olhares
estrangeiros continuassem a descrever o funcionamento do mercado de escravos do
Rio. A viajante inglesa Maria Graham, por exemplo, que esteve no Brasil entre
1821 e 1823, escreveu em seu Diário de uma Viagem ao Brasil que, no Valongo, "todo o tráfico
de escravos surge com todos os seus horrores perante nossos olhos". Cada
"peça" tinha um preço. Um africano novo e saudável, em 1811, podia
chegar a algo em torno de cem mil réis, mas podia alcançar 200 mil se tivesse
alguma habilidade especial, como a carpintaria. Como comparação, uma casa
pequena no Rio de Janeiro custava cerca de um conto de réis, o que daria para
comprar dez escravos normais ou cinco habilidosos.
No
fim dos anos 20 do século 19, o tráfico de escravos para o Brasil vivia seu
apogeu, e o Valongo era a principal porta de entrada principalmente para os
negros vindos de Angola, da África Oriental e da Centro-Ocidental - nos
entrepostos do Maranhão e da Bahia, ainda chegavam navios vindos respectivamente
da Guiné e da África Ocidental. Mas a maioria tinha necessariamente que ao
menos passar pelo Valongo, para que os traficantes pagassem seus impostos.
"A renda da tributação do mercado negreiro era alta. Mas o Rio era um
polo distribuidor de escravos, não concentrador", explica Carlos Líbano.
Esses
escravos saíam da capital para as plantações de café, fumo e açúcar do interior
e de outras regiões do país, especialmente no Vale do Paraíba e em São Paulo.
"O escravo é o insumo básico dessa economia, o motor, o petróleo
dela", diz Líbano. Os que ficavam geralmente eram os escravos domésticos,
além dos usados como força de trabalho nas obras públicas. Muitos eram
especialistas, como sapateiros, quitandeiras, cabeleireiros ou ourives, que
gahavam do seu senhor o direito de exercer suas profissões na rua, tornando-se
escravos de ganho. Parte do dinheiro ficava para o próprio escravo, que tinha
sua vida, independente da do patrão: pagava aluguel e andava
pelas ruas. Quem conseguia juntar dinheiro comprava a alforria.
Em
1831 o Valongo foi fechado, quando o tráfico transatlântico foi proibido por
pressão da Inglaterra. A norma foi solenemente ignorada e recebeu a alcunha
irônica de "lei para inglês ver. Os traficantes usavam portos
clandestinos para trazer sua mercadoria. Em 1850, com a assinatura da Lei
Eusébio de Queirós, pôs-se fim verdadeiramente ao tráfico para o Brasil, embora
a escravidão persistisse até a Abolição, em 1888. "A última remessa de que
se tem informação é de 1872" conta Líbano. A área do Valongo, entre 1850 e
1920, se transformou no que ficou conhecido como Pequena África: um espaço
ocupado por negros libertos de diversas nações”.
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