A VELHA SENHORA
Ela era
negra como uma noite sem luar. E tinha a dignidade estampada na palma das mãos
calejadas. Era negra sim, e esse era o único orgulho que ainda lhe restava.
Lembrava-se que descendia de um povo que nasceu para trabalhar. Dizia a si
mesma entre mangas de paletó e cerzidos de anágua, que os negros chegaram ao
Brasil como escravos. Trouxeram a alegria colada à alma, e mesmo tratados
"como coisa que se joga fora", eram pessoas — e como
tal — eram dignos de respeito e mereciam ser amados. Assim, cheia de
si, enamorava-se pela vida toda vez que nela pensava. Aliás, a vida sempre lhe
fora amiga, protetora e guardiã.Ela era
negra como uma noite sem luar. E tinha a dignidade estampada na palma das mãos
calejadas. Era negra sim, e esse era o único orgulho que ainda lhe restava.
Lembrava-se que descendia de um povo que nasceu para trabalhar. Dizia a si
mesma entre mangas de paletó e cerzidos de anágua, que os negros chegaram ao
Brasil como escravos. Trouxeram a alegria colada à alma, e mesmo tratados
"como coisa que se joga fora", eram pessoas — e como
tal — eram dignos de respeito e mereciam ser amados. Assim, cheia de
si, enamorava-se pela vida toda vez que nela pensava. Aliás, a vida sempre lhe
fora amiga, protetora e guardiã.
Dia
desses do passado, a doce velha de cabelos açucarados como brancos torrões de
nostalgia, lembrou-se de sua juventude. Percebeu que lá por aquelas épocas,
tudo aquilo que hoje via no espelho, nem de perto parecia-se com ela…
— Tenho certeza que meus olhos
jamais verão outra face tão bela quanto a dela em minha passagem pela Terra.
Quando jovem, era linda, e encantava a todos com sua hermosura de Conto de Fadas. Embora não fosse loura, ruiva ou
trigueira, como era o padrão de beleza racista da época; ainda que contrariasse
os prosélitos das cores primárias, — tinha uma alma tão delicada, que por si só
justificava o fato de Preta ser bonita.
…Então, depois de algumas horas
consertando o relógio da memória, conseguiu se ver aos vinte e cinco anos de
idade, caminhando elegantemente pelas ruas de Copacabana, com crespos cabelos
negros a emoldurarem-lhe o rosto magro, com rubras maçãs à face. Preta corou ao
lembrar-se de um rapaz que conhecera àquela tarde, e que meses depois a pedira
em casamento. Aceitou de imediato, vindo a enviuvar-se horas a frente.
Parmênides;
o marido, bombeiro aposentado por invalidez, — vítima do Regime Militar que
assolava a capital naqueles tempos idos, ao atender uma ocorrência de artefato
explosivo, colocado no auditório de uma universidade, por militares, que agindo
assim, tentavam calar "certos acadêmicos" tido como "subversivos",
foi atingido em serviço por estilhaços dois anos antes de se conhecerem. Se bem
que, aparentemente saudável, qual a Pátria Mãe, sofria das inúmeras sequelas
que a bomba da ditadura provocara: vindo a estiolar-se, pasmem!, naquele que
seria o dia mais feliz de sua biografia. Grávida e solitária, Preta percorreu
noites e dias pela vida, em busca de teto e comida, para o filho e a si mesma
sustentar. Por sorte conseguiu trabalho em casa de família e teve lá mesmo o
filho, a quem deu o nome de Antônio, em homenagem ao santo.
Antônio
morreu aos cinco anos de idade, atropelado na porta da escola por um motorista
embriagado. E junto com ele foi um pouco de Preta para os sete palmos que o
garoto descia. Agora mais só do que quando nascera, Preta também estava mortificada.
Dura por fora e mole por dentro. A senhora que outrora sonhara ser feliz,
bambeava-se toda quando via o futuro incerto que lhe aguardava na escuridão.
Essa é
a história de uma mãe que perde um filho e de um filho que perde uma mãe. E de
como sonhos viram pesadelos. A propósito, como?! Se você perdeu alguém que
amava, sabe a resposta. Se ainda não perdeu, um dia a gente conversa.
Acontece
que os anos passaram como um pé de vento e Preta continuava ali… meio morta,
meio viva. A velhice chegou sem avisar, e embora confiasse demais na vida,
percebia que estava cansada de viver em situação de rua, de não ter nada de
seu — humano ou material — para lhe fazer companhia.
— Fiquei pensando em mim,
envelhecendo. A beleza da juventude, esmaecendo. E eu ali, desaparecendo…
Preta
sentia-se soberanamente abandonada, como se alguém lhe tivesse pregado uma
peça, daquelas que é melhor rir para não chorar. Uniu estranhas imagens e viu
como o mundo representa absurdos na vida de quem é feliz sem ter nada. Uma felicidade
subliminar. Inconsciente. Um piscar de olhos…
Velha,
cansada, pobre, mulher, negra, viúva, intangível; mãe das três virtudes
teologais, e de um menino, que de tão esvanecido já virou pó…
Como se
diz a mãe que o filho se foi? Mãe não devia viver para ver o filho morrer. Mãe
enterrar o filho é contra a lei da natureza. Dizem que não há dor maior que as
dores do parto. Mas há, sim. Não há coisa que se compare a perda de um filho na
flor da idade, como foi o caso de Antônio. Dor maior que ter é a dor de perder.
Como se
chama a mãe que perde um filho? Filho sem pais é órfão. E pais sem filho, como
se chamaria? Não sabia.
Talvez a hipótese de se perder
um filho fosse tão horrível, que os linguistas horrorizados não tivessem
pensado em palavra de igual tamanho para nomeá-la. Pois é o tipo de cousa que
acontece com os outros, que a gente acha que nunca vai acontecer com a gente.
Os pais sabem que devem criar os filhos para o mundo, mas como criá-los para um
mundo tão violento? E o que sente alguém ao perder um filho? Não sabia. O que
tinha certeza era que se morrera uma vez, poderia fazê-lo novamente. Só que
agora, por ela mesma.
Quando
a gente perde tudo o que tem, tudo ganha um outro sentido… Do mesmo modo,
sem casa e sem forças, fechou os olhos e sonhou como seria a vida se tivesse
nascido em uma sociedade que ama seus semelhantes. Pensou nas oportunidades que
teria, em portas se abrindo a sua frente, em marido saudável e filho vivo.
Sonhou
com tantas coisas que nem percebeu que um anjo com asas de alcaçuz sentou-se a
sua frente.
Era bom
sonhar, porque mesmo muito amiga, a vida às vezes parece mais amiga dos outros;
e torna a nossa, um pouco menos interessante e feliz que a deles.
Portanto, sonhar é acalentador,
quando a realidade parece dura demais para sustentar os olhos abertos.
Destarte, com os olhos bem
cerrados, Preta recordou-se do marido, da juventude envelhecida, do filho no
caixãozinho branco, das rosas que lhe dera como um presente de viagem, e das
vezes que chorou e sorriu por nada.
O anjo que dela se acercara,
não quis acordá-la, pois sonhando lindo estava. E não é educado, angelical ou
divino, — acordar uma velha senhora inconspícua, quando sonhos, são só o que
lhe resta.
Deixou-a
dormir, até que seu velho coração parou de bater, e ela deixou-se morrer.
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Este texto faz parte do livro "O príncipe de ébano” (eBook Kindle) e está à venda em:
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Você é excelente em tudo que faz, Carlos. Parabéns por mais um sucesso de escrita e de talento. Vida longa, caríssimo! God save the King! Abs, Marcelo da Costa Moura.
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