A VELHA SENHORA







Ela era negra como uma noite sem luar. E tinha a dignidade estampada na palma das mãos calejadas. Era negra sim, e esse era o único orgulho que ainda lhe restava. Lembrava-se que descendia de um povo que nasceu para trabalhar. Dizia a si mesma entre mangas de paletó e cerzidos de anágua, que os negros chegaram ao Brasil como escravos. Trouxeram a alegria colada à alma, e mesmo tratados "como coisa que se joga fora", eram pessoas — e como tal — eram dignos de respeito e mereciam ser amados. Assim, cheia de si, enamorava-se pela vida toda vez que nela pensava. Aliás, a vida sempre lhe fora amiga, protetora e guardiã.Ela era negra como uma noite sem luar. E tinha a dignidade estampada na palma das mãos calejadas. Era negra sim, e esse era o único orgulho que ainda lhe restava. Lembrava-se que descendia de um povo que nasceu para trabalhar. Dizia a si mesma entre mangas de paletó e cerzidos de anágua, que os negros chegaram ao Brasil como escravos. Trouxeram a alegria colada à alma, e mesmo tratados "como coisa que se joga fora", eram pessoas — e como tal — eram dignos de respeito e mereciam ser amados. Assim, cheia de si, enamorava-se pela vida toda vez que nela pensava. Aliás, a vida sempre lhe fora amiga, protetora e guardiã. 

Segundo a segundo, Preta envelhecia a passos largos, ressentindo-se cada vez menos com o destino que dela fizera muito pouco, quase nada. Passara a vida desejando casa. Não teve. Passara a vida desejando um cantinho que dele pudesse chamar de seu. Sonhava com cortinas de seda, copos de geleia decorados, pinguim de geladeira, fogão à lenha, cadeira de balanço descansando na varanda, varal de corda, cama de princesa, pé no chão e chinela na mão. Sonhava com quebra-queixo, rapadura, bombocado — cada um no seu quadrado. Sonhava com pé-de-moleque, cuscuz, bem-casado — tudo junto e misturado. Sonhava dulcíssimo! Mas quando demora muito tempo sem vir uma notícia boa, a gente fica muito amargo, sabe? Sonha com casa, sonha com comida, sonha com açúcar, sonha com afeto. Por fim, o grama de sacarose que se coloca na balança, tem o peso da nossa esperança. É assim que acontece na vida da gente. E na vida de Preta não era diferente… Sonhava com tudo que alguém que sonha — pensa realizável. Queria  mesmo uma casa dessas que tem porta, janela, paredes branquinhas, chão limpinho e tapetes coloridos deitados na sala, com sofá, cachorro e felicidade por cima. Mas a vida é mesmo um caso de soluções muito pouco previsíveis. E isso deu a Preta a conclusão mais difícil de se aceitar. A velha que acostumou-se a não ter nada, passou a ver-se com menos ainda, já que seu sonho de casa própria, parecia mesmo impossível de realizar-se.

Dia desses do passado, a doce velha de cabelos açucarados como brancos torrões de nostalgia, lembrou-se de sua juventude. Percebeu que lá por aquelas épocas, tudo aquilo que hoje via no espelho, nem de perto parecia-se com ela…
— Tenho certeza que meus olhos jamais verão outra face tão bela quanto a dela em minha passagem pela Terra. Quando jovem, era linda, e encantava a todos com sua hermosura de Conto de Fadas. Embora não fosse loura, ruiva ou trigueira, como era o padrão de beleza racista da época; ainda que contrariasse os prosélitos das cores primárias, — tinha uma alma tão delicada, que por si só justificava o fato de Preta ser bonita.
…Então, depois de algumas horas consertando o relógio da memória, conseguiu se ver aos vinte e cinco anos de idade, caminhando elegantemente pelas ruas de Copacabana, com crespos cabelos negros a emoldurarem-lhe o rosto magro, com rubras maçãs à face. Preta corou ao lembrar-se de um rapaz que conhecera àquela tarde, e que meses depois a pedira em casamento. Aceitou de imediato, vindo a enviuvar-se horas a frente.

Parmênides; o marido, bombeiro aposentado por invalidez, — vítima do Regime Militar que assolava a capital naqueles tempos idos, ao atender uma ocorrência de artefato explosivo, colocado no auditório de uma universidade, por militares, que agindo assim, tentavam calar "certos acadêmicos" tido como "subversivos", foi atingido em serviço por estilhaços dois anos antes de se conhecerem. Se bem que, aparentemente saudável, qual a Pátria Mãe, sofria das inúmeras sequelas que a bomba da ditadura provocara: vindo a estiolar-se, pasmem!, naquele que seria o dia mais feliz de sua biografia. Grávida e solitária, Preta percorreu noites e dias pela vida, em busca de teto e comida, para o filho e a si mesma sustentar. Por sorte conseguiu trabalho em casa de família e teve lá mesmo o filho, a quem deu o nome de Antônio, em homenagem ao santo. 

Antônio morreu aos cinco anos de idade, atropelado na porta da escola por um motorista embriagado. E junto com ele foi um pouco de Preta para os sete palmos que o garoto descia. Agora mais só do que quando nascera, Preta também estava mortificada. Dura por fora e mole por dentro. A senhora que outrora sonhara ser feliz, bambeava-se toda quando via o futuro incerto que lhe aguardava na escuridão.  

Essa é a história de uma mãe que perde um filho e de um filho que perde uma mãe. E de como sonhos viram pesadelos. A propósito, como?! Se você perdeu alguém que amava, sabe a resposta. Se ainda não perdeu, um dia a gente conversa.

Acontece que os anos passaram como um pé de vento e Preta continuava ali… meio morta, meio viva. A velhice chegou sem avisar, e embora confiasse demais na vida, percebia que estava cansada de viver em situação de rua, de não ter nada de seu — humano ou material — para lhe fazer companhia.

— Fiquei pensando em mim, envelhecendo. A beleza da juventude, esmaecendo. E eu ali, desaparecendo… 

Preta sentia-se soberanamente abandonada, como se alguém lhe tivesse pregado uma peça, daquelas que é melhor rir para não chorar. Uniu estranhas imagens e viu como o mundo representa absurdos na vida de quem é feliz sem ter nada. Uma felicidade subliminar. Inconsciente. Um piscar de olhos…

Velha, cansada, pobre, mulher, negra, viúva, intangível; mãe das três virtudes teologais, e de um menino, que de tão esvanecido já virou pó…  
Como se diz a mãe que o filho se foi? Mãe não devia viver para ver o filho morrer. Mãe enterrar o filho é contra a lei da natureza. Dizem que não há dor maior que as dores do parto. Mas há, sim. Não há coisa que se compare a perda de um filho na flor da idade, como foi o caso de Antônio. Dor maior que ter é a dor de perder.

Como se chama a mãe que perde um filho? Filho sem pais é órfão. E pais sem filho, como se chamaria? Não sabia.
Talvez a hipótese de se perder um filho fosse tão horrível, que os linguistas horrorizados não tivessem pensado em palavra de igual tamanho para nomeá-la. Pois é o tipo de cousa que acontece com os outros, que a gente acha que nunca vai acontecer com a gente. Os pais sabem que devem criar os filhos para o mundo, mas como criá-los para um mundo tão violento? E o que sente alguém ao perder um filho? Não sabia. O que tinha certeza era que se morrera uma vez, poderia fazê-lo novamente. Só que agora, por ela mesma.

Quando a gente perde tudo o que tem, tudo ganha um outro sentido… Do mesmo modo, sem casa e sem forças, fechou os olhos e sonhou como seria a vida se tivesse nascido em uma sociedade que ama seus semelhantes. Pensou nas oportunidades que teria, em portas se abrindo a sua frente, em marido saudável e filho vivo.

Sonhou com tantas coisas que nem percebeu que um anjo com asas de alcaçuz sentou-se a sua frente.

Era bom sonhar, porque mesmo muito amiga, a vida às vezes parece mais amiga dos outros; e torna a nossa, um pouco menos interessante e feliz que a deles.
Portanto, sonhar é acalentador, quando a realidade parece dura demais para sustentar os olhos abertos.
Destarte, com os olhos bem cerrados, Preta recordou-se do marido, da juventude envelhecida, do filho no caixãozinho branco, das rosas que lhe dera como um presente de viagem, e das vezes que chorou e sorriu por nada.
O anjo que dela se acercara, não quis acordá-la, pois sonhando lindo estava. E não é educado, angelical ou divino, — acordar uma velha senhora inconspícua, quando sonhos, são só o que lhe resta.  

Deixou-a dormir, até que seu velho coração parou de bater, e ela deixou-se morrer.




_____________________________________________________


Este texto faz parte do livro "O príncipe de ébano (eBook Kindle) e está à venda em:



B.A.S.T.A.! © copyright by Carlos Alberto Pereira dos Santos 2017
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY CARLOS ALBERTO PEREIRA DOS SANTOS

Comentários

  1. Você é excelente em tudo que faz, Carlos. Parabéns por mais um sucesso de escrita e de talento. Vida longa, caríssimo! God save the King! Abs, Marcelo da Costa Moura.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

ETERNAMENTE ANILZA!

PRESSENTIMENTO

COLOQUE O AMENDOIM NO BURACO DO AMENDOIM