SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA, EU MORRO





Eu não sei se há estrelas debaixo desse céu. Mas a vida aqui é tão mágica, tão cheia de graça, que mesmo que estrelas não haja, as vejo intocadas como folhas de papel.

Dois dias depois de morrer, Homero caminhava calmamente às margens do Aqueronte, a procura de uma moeda. Sabia que só assim poderia pagar Caronte pela viagem ao Hades. Com um pouco de esforço, apesar da densa névoa que cobria tudo, conseguiu ver ao longe, a barca. 'Só pode ser Caronte vindo buscar-me'  pensou. Mas como iria embarcar sem a tal moeda sob a língua? Vendo Caronte aproximar-se mais e mais, desesperou-se. Talvez o melhor fosse sair correndo. Talvez o melhor fosse fugir dali. Se entrasse na barca sem um centavo que fosse, sabia que seria condenado a ficar preso à margem do Aqueronte, por toda a eternidade. Ou na melhor das hipóteses, seria obrigado a nadar por cem anos em suas águas. Se voltasse para casa, viraria assombração. Afinal, não existe lugar seguro para os mortos na Terra. Se fosse com Caronte, talvez encontrasse a paz no reino de Hades. Mas como ninguém havia voltado de lá para dizer se o mundo dos mortos era bom ou ruím, temia perder da vida a única coisa que ainda lhe restava: Esperança. Desesperado, enfiou os dedos nos olhos até arrancá-los. 'Melhor cego agora, do que condenado depois'. 'O Mundo Inferior é mais doce quando estamos sós' – pensou. 'Nos subterrâneos da Terra só não é feliz quem deixou na superfície um grande amor'. 'Sentimentos desertos' – balbuciou. Enfim, no fundo dos olhos caídos ao chão, encontrou duas moedas de ouro. Agora sim, poderia pagar Caronte, e seguir viagem rumo ao reino de Hades.
   
Ao aproximar-se, Caronte recolheu o óbulo e deixou com que passasse à barca. Eram dias difíceis aqueles... Dias em que até para entregarmos os nossos mortos nas mãos do indecifrável, tínhamos que profanar-lhes o globo ocular. 'Mas assim é a vida' – pensou. Se fossem outros tempos, teria perguntado alguma coisa à Caronte. Ao menos gostaria de saber para onde seria levado. Mas os tempos eram outros... Tempos de esperar. E todos sabem que em momentos assim, o melhor mesmo é ficar calado. Então partiu em silêncio, impressionado com a máscara de bronze que adornava o rosto dessa figura mitológica, do mundo inferior grego, – que escapava-lhe à compreensão. Caronte tinha cheiro de morte. E isso assusta até mesmo os vivos, que dirá os mortos. Mortos que mesmo mortos temem o cheiro da morte. A sorte é que mesmo sem saber direito para onde ia, já havia embarcado no esteio de Caronte. 'A sorte está lançada' – pensou. Um segundo depois, já adormecido, sonhou com o Hades. Lá havia de ter água potável para que os mortos tivessem o que beber. E muito pão para saciar a fome. Lá também havia de ter carneiros a correr... Pássaros a voar... Homens e mulheres com quem pudesse conversar. Quando estava profundamente acomodado nos braços de Morfeu, sentiu que Anilina, sussurrou-lhe algo ao ouvido. Anilina dizia: 'Não confies tanto na honestidade de Caronte. Debaixo daquele capuz e atrás daquela máscara, não existe um homem bom. Apenas um quadrúpede macabro, que insiste em apresentar-se como se bípede fosse. Caronte não é humano nem animal. Caronte é irracional. Portanto, se vivo estivesses, pediria que saísses correndo. Mas já que morto estás, e olhos não mais possuis, fiques de ouvidos bem abertos. Pois Caronte é pior que mil pragas do Egito. E mesmo estando na Grécia, não penses que o mal aqui não te possas alcançar. Posso ver o passado e o futuro, meu caro. Não te enganes... Eu sei o que digo. Portanto, já que entregaste à Caronte uma moeda, não deixes que ele perceba que tens outra. Esta única moeda que tens é tudo que da vida te sobrou. Ouças-me bem: Essa moeda poderá te trazer de volta à vida. Será o teu passaporte para longe do mundo dos mortos. Ou se Caronte descobri-la no buraco dos teus olhos, será o motivo perpétuo da tua condenação. Nunca digas nunca. Só aprendas a dizer não. Entendas uma coisa: Caronte não é cem por cento mau. Nem cem por cento bom. Apenas herdou dos deuses os mesmos defeitos e qualidades que os deuses possuem. É mais humano que Zeus e menos divino que Hércules. Não duvides das minhas palavras. Podes confiar em mim... Sei o que digo porque Caronte é meu filho. Ouças-me bem: Caronte era um bom menino... Foi uma criança normal como todas as outras. E na adolescência ainda conservava aquele ar infantil que eu tanto amava. Mas quando atingiu a maior idade, Hades obrigou-lhe a roubar a Caixa de Pandora. Quando Zeus percebeu tamanho absurdo, condenou Caronte a ir para o Erubus. Assim milênio após milênio, meu filho tornou-se o barqueiro, que faz a passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. E nessa travessia não são os justos que alcançam a paz eterna. Mas aqueles que podem pagar. Portanto, meu querido, não há justiça no mundo dos vivos nem no mundo dos mortos. Não te percas no mundo das ilusões. Pagues o que tiveres que pagar e pronto. Compreenda: Quando ele começou a guiar os mortos rumo ao Hades, mandei meu outro filho, Corante, ajudar ao irmão gêmeo, Caronte, serpente saída das minhas entranhas, a embarcar os defenestrados rumo ao descanso eterno. Juntos, cada um ladeado por seu remo, seguiram transportando os mortos para o outro lado do Aqueronte, dividindo por toda a eternidade, moeda a moeda, o lucro e a gorjeta. Acontece que movido por sua insaciável cobiça, Caronte ao invés de repartir com o irmão, as moedas que sobravam, roubava-as todas, deixando assim Corante a ver navios. Percebendo que o poço das moedas secava, embora houvessem milhares de mortos a pagarem diariamente pela travessia, Corante passa a desconfiar da honestidade do irmão. Ao descobrir que de fato Caronte o roubara por décadas, Corante decidiu vingar-se. Colocou fel nas palavras, e disse a Caronte com todas as letras, que sabia que o irmão não passava de um ladrãozinho barato. Ofendido, Caronte declara guerra ao irmão. A partir dali, Corante tornou-se Abel nas mãos de Caim. Os dois pelearam por treze meses (de vinte e oito dias) e um dia. Abandonados por mais de um ano, os mortos sem saberem para onde ir, agonizavam sobre a Terra. Trezentos e sessenta e cinco dias depois, Caronte mata Corante, afogando às margens do Aqueronte, o tesouro de minh'alma. Corante desfaz-se instantaneamente, tingindo Aqueronte de vermelho. Como eu, Nanquim, seu pai, aprendeu a chorar. E como ele, aprendi a perdoar. Afinal, Caronte apesar de assassino, também era nosso filho. A dor que em nós criou morada após a morte de Corante, era a mesma que em nós habitava após o crime de Caronte. E não importava quanto tempo durasse: Corante, Caronte, Nanquim ou eu, de um jeito ou de outro, mortos ou vivos, vivos ou mortos, estávamos mortos. Mesmo sabendo que ninguém permanece eternamente nos braços da morte, o que mais nos confortava, era saber que até a morte iria morrer. Como era sina de todo deus, Nix criou Hades, Hipnos criou Morfeu, e quem pariu Mateus, que o embale.

Sendo assim Centauros pariram Ciclopes, que pariram Dragões, que pariram Erínias, que pariram Gigantes, que pariram Górgonas, que pariram Graças, que pariram Harpias, que pariram Hecatônquiros, que pariram Helíades, que pariram Horas, que pariram Lâmias, que pariram Ménades, que pariram Moiras, que pariram Musas, que pariram Ninfas, que pariram Sereias, que pariram Sirenes, que pariram Nereidas, que pariram Oceânides, que pariram Plêiades, que pariram Sátiros, que pariram Semideuses, que semeiam Ventos, que colhem tempestades, que não pariram nada nem ninguém.

Tudo escrito aqui é verdade: Eu juro. E juro por Zeus, por Posídon, por Héstia, por Hermes, por Hera, por Hefesto, por Hades, por Dioniso, por Deméter, por Atena, por Ártemis, por Ares, por Apolo, por Afrodite, por Zelo, por Tique, por Tânato, por Selene, por Quíron, por Psiquê, por Pluto, por Proteu, por Perses, por Perséfone, por Péon, por Pã, por Orfeu, por Nomos, por Nice, por Nereu, por Nêmesis, por Morfeu, por Momo, por Métis, por Maia, por Macária, por Leto, por Ísis, por Ilítia, por Hipnos, por Hésperos, por Hélios, por Hécate, por Hebe, por Harmonia, por Fobos, por Éris, por Eósforos, por Eos, por Éolo, por Ênio, por Dione, por Diké, por Deimos, por Cratos, por Circe, por Bia, por Astreia, por Astéria, por Asclépio, por Alfeu, por Alburno, por Urano, por Tártaro, por Tálassa, por Pontos, por Physis, por Ourea, por Óreas, por Ofion, por Nix, por Nesoi, por Hemera, por Gaia, por Fanes, por Eurínome, por Euríbia, por Éter, por Eros, por Érebo, por Chronos, por Caos, por Calígena e por Ananke. Tudo escrito aqui é verdade; eu juro. Juro por Zeus. E se mesmo assim, não acreditares em mim, juro até por semi-deus: Teseu, Perseu, Páris, Orestes, Odisseu, Menelau, Jasão, Héracles, Heitor, Eneias, Édipo, Belerofonte, Argonautas, Aquiles, Ájax e Agamemnon. Por isso digo e repito: Tudo escrito aqui é verdade, eu juro. Juro por Zeus. E também por Tétis, por Têmis, por Téia, por Reia, por Febe, por Mnemosine, por Oceano, por Crio, por Jápeto, por Hipérion, por Cronos e por Céos. E juro também pelos Titãs, filhos de Jápeto: Prometeu, Atlas, Menecéio e Epimeteu. Para avalisar a minha jura, eu juro, chamo Équemo, Íxion, Leda, Minos, Niobe, Penélope, Sísifo e Tântalo. E chamo também as Musas Urânia, Terpsícore, Tália, Polímnia, Melpômene, Euterpe, Erato, Clio e Calíope. Agora, se mesmo assim, em mim não acreditares, chamarei Pentesileia, Pantariste, Otrera, Molpadia, Menalipe, Marpesia, Lampedo, Labrys, Hipólita, Celaeno, Astéria, Antíope, Alcíbia e Aela. Inspirada na tua Amazonomaquia, declararei em teu nome, a Guerra Ática. E farei com que as guerreiras jurem a minha jura, até a última das mais últimas das Amazonas. Elas contarte-ão sobre os Doze Trabalhos de Hércules, sobre Centauromaquia, sobre a Odisseia, sobre a Guerra de Tróia, sobre Titanomaquia e sobre Gigantomaquia. Histórias que nos confirmarão às Pitonisas e às Sibilas: Pítia, Herófila, Sibila de Cumas e Peleiades. Assim percorreremos o Monte Ótris, Tróia, Temiscira, Olimpo, Olímpia, Monte Parnaso, Lete, Lemnos, Jardim das Hespérides, Hiperbórea, reino de Hades, Flegetonte, Rio Estige, Elêusis, Dodona, Dídima, Delos, Delfos, Cócito e Alfeu, propagando à verdade, a nossa verdade. E farei mais: Consultarei o oráculo, que consultará à Pítia, que consultará às runas, que confirmarão que é verdade tudo que eu digo. E já que estás tonto, consultarei o oráculo, depois te conto'.

'Não há nada além da vida', declarou-me Corante num sonho. 'Apenas choro e ranger de dentes' – sentenciou. Acordei assustado e fiz uma oração à Zeus. Dois segundos depois, veio-me um pensamento à cabeça: 'Não se fazem mais mortos como antigamente'. 'Nem morto bicho, nem morto gente. Pois tudo hoje em dia é muito diferente'. Por isso, chegando ao Hades, Homero parou, olhou ao redor, retirou a moeda que escondera no buraco do olho, deu-a de gorjeta a Caronte, despediu-se e reencarnou. Porque não seria ele que vivera tanto, que ficaria justamente ali, no mundo dos mortos.

Tudo que está escrito aqui é verdade, eu juro. Por isso peço-te que veles meu sono e não me deixes dormir além do limite de um século. Além do limite da dúvida. Além do limite do azar ou da sorte. Além do limite da vida ou da morte. Por favor, meu amor, eu te imploro: Mates-me se preciso for. Mas por favor, não me deixes dormir.   

Por favor, meu amor, socorro. Não me abandones... Se me deixares agora, despetalo, desfaleço e morro.

Se eu fechar os olhos agora, eu morro.




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Comentários

  1. Roberto Chateaubriand6 de junho de 2011 às 13:23

    Betto, não é a toa que todo mundo que lê os seus textos, acaba amando você. Você é genial, cara! E como já é comum na roda de amigos, dizermos: Vida Longa ao Rei! Sucesso, meu Rei! Sucesso!

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  2. Lorena Barata Ribeiro6 de junho de 2011 às 17:18

    Eu amo os seus textos, Bettinho! I LOVE YOU!!!

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  3. Quanto talento tem a alma de um gênio! Adorei o conto, Betto! Adorei!

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  4. Luiz Alfredo Javier Bastos6 de junho de 2011 às 18:32

    O melhor do seu blog é você, Betto! Texto magistral, cara! Abs!

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  5. Amo os seus textos, gato! Amo!

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  6. Adoro quando você escreve sobre mitologia grega, Betto. Legal mesmo ler coisas assim. E o que acho mais maneiro é que nas suas mãos, histórias tão antigas viram instantaneamente contemporâneas. Colocar “The Cure” como trilha sonora foi um achado!!! Espero que todos percebam e entendam a proposta do texto. Fiquei horas conversando com a Gi sobre o texto. Muito legal colocar Homero como personagem principal e Caronte como personagem central. Legal também ter citado os deuses gregos. Muita gente não conhece 1/10 da história da Grécia antiga e não saca nada de mitologia, então um texto tão rico como este, aproxima a cultura das pessoas. Parabéns, meu Rei! Sucesso, leke. Sucesso!!!

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  7. Betto, o legal do seu blog é que você escreve para quem gosta de ler. Aqui a literatura emana de todos os poros! Adorei o texto, lindão! Bjs!

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  8. Amado Betto Barquinn, magistral como sempre! Maravilhoso o texto, cara! Abs!

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  9. Muito bom o texto, Barquinn! Parabéns, brother!

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  10. Ana dos Santos Guedes9 de junho de 2011 às 06:36

    Bettinho querido, muito legal esse conto! Você consegue de forma impecável colocar emoções em palavras. Delícia de blog, gatinho! Beijos!

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  11. Betto, verdadeiramente você não é desse mundo! Que ser iluminado você é, meu lindo. Tão inteligente, tão talentoso, tão soberanamente humano. Lindo esse conto, amado. Parabéns, meu Rei! Bjs!

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  12. Muito bom vir ao seu blog e ler os seus textos, Barquinn. Esse blog é coisa de gente grande! Sucesso, fera! Abs!

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  13. Bettinho querido, como sempre, tudo o que você toca vira ouro! Amei o texto, gato! Bjs!!!

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  14. O que mais gosto no seu trabalho amado, é que você transpira genialidade por todos os poros. Para quem gosta de literatura e tem o hábito da leitura, este blog é o lugar certo. Muito cult, Betto! Vida Longa ao Rei! Beijokas!

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  15. Betto, você é um sucesso! Parabéns!

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