O TEATRO DOS ESPÍRITOS
Todos os anjos que encontrei pela estrada tinham as asas quebradas. E por algum estranho motivo não sentiam dor. Esbarrei pelo caminho com criaturas andróginas, que andavam, falavam e emocionavam-se, de uma forma bastante incomum para mim. Homens e mulheres especiais, que podiam não saber porque estavam vivos, mas sabiam para que vieram. Espíritos milenares sacrificando a própria alma. Bruxas medievais matando a sede num Sabat secreto. Magos energizando-se com água fluidificada. Pessoas, sim. Pessoas, enfim. 'É o sinal dos tempos' – pensei. Naquele instante o silêncio crudara à alma feito chiclete. Ao respirar profundamente, – concluí: 'Não sou um ser óbvio por definição. Confesso ser um verdadeiro mistério, que propositalmente quer se passar, pela criatura mais comum desse mundo. E talvez por isso, curioso aos olhos, atencioso aos ouvidos, equilibrado à mente e fertil à alma, por excesso de atrativos incomensuráveis. Uma imagem construída com muito cuidado. Absolutamente serena e equilibrada. E mesmo assim, ninguém compreende os meus sentimentos. Mesmo sendo um homem tão cheio de defeitos, ainda assim, consigo ser pacato e fora de perigo, porque hoje a paz abraça o meu coração. E por motivos simples, admiro e amo a todos, pois os quero bem, – qual a mim mesmo. Já viajei por muitos lugares. Sou como o Fado: Cá estou... Se queres conhecer-me, ouças-me como a uma guitarra portuguesa, e minh'alma sussurrar-te-à os segredos que trago no coração. Do alto dos meus quatro mil e duzentos anos, vi muita gente nascer, viver e partir. Ao longo desse tempo, habitei corpos indicerníveis. Personalidades que ninguém ousaria habitar. Passei por crateras, desertos, solos fugazes, povos primitivos, civilizações em total declínio moral, vidas secas, figuras inimagináveis; mas que existem. Não sei como diserní-las, explicá-las ou mesmo falar sobre elas. Sei como não falar sobre elas: Mudo de assunto, acendo um incenso, sirvo-me de mais um copo d'água e sigo compondo o meu Fado.
Realmente não vou falar de tudo que vi. Era rude demais... Era mau. Fogo e luz vindos do nada. Surgindo como faíscas na bolha de sabão. Dor e medo fazendo amor em plena rua. Mortos-vivos cantarolando na bola de cristal. Vi muitos velhos que não pareciam ser velhos. Mulheres dançando nuas na escuridão. Jovens carregando imensas toras de madeira, conduzindo à lenha e cremando seus corpos. Uma visão do Hades, observada por sobre as nuvens do Olimpo, sem nenhum tipo de ação midiática. Naquele instante, entoei todos os mantras que pude me lembrar. Quando se está no exílio, preso numa gaveta dentro do móvel de si mesmo, a vida parece andar depressa demais, – para um espírito lento e cansado acompanhar. Embora me lembre de todos os lugares que conheci, de todas as vidas que vivi, não sou capaz de lembrar-me de uma pessoa sequer, que tenha me amado. Não me recordo dos nomes nem dos sobrenomes dos homens. Só não me esqueço qual é o nome de Deus. Por isso não vou falar de tudo que vivi. O passado está morto e enterrado.
Ontem recebi a visita do inominável, que trouxe-me fogos de artifício explodindo ao mar. Mortos rastejando na lápide fria. Gemidos quietos, sonolentos e calados, – esperando pelo dia do Juízo Final. Pesadelo. Aí me dei conta que a minha dor só dói quando eu rio. Relembrando algumas encarnações à frente, não me recordo de ter visto no futuro, um universo amaldiçoado. Muito pelo contrário: Compreendi amor. Uma cumplicidade mútua, ajudando aos encarnados da Terra, a viverem numa outra dimensão, – sem abismos; sem sonhos maus. Revisitando o futuro, pude assistir a homens e mulheres desmaterializados, caminhando nús, descalços, livres e felizes; cantando, orando e dançando em volta da fogueira. 'Apenas um ponto no unverso...' – pensei. 'A vida é muito mais que isso...'. Por isso enxergo vidas agraciadas pelo direito à viverem num lugar mágico, e por si só, abençoado por Deus. Lugares nunca dante visitados... 'Acabou o mundo' – dirão os incrédulos. Desencarnamos – anunciarão os homens sábios. 'O passado não nos condenou' – falarão os homens de boa fé. 'Por isso chegamos até aqui...'. O importante não é conceber alusões sobre viver ou morrer. 'Existem outros estágios além da vida. Outros estágios além da morte. Além do que dizem as cartas sobre a nossa própria sorte' – disse-me a voz. 'Qual é o seu destino?' – perguntou-me. 'O Fado é o meu destino' – respondi. 'O meu destino é o Fado'. 'E não existiria destino, se o Fado de todos nós, não fosse a felicidade eterna. Por isso não sei quantas vezes renasci nesta vida atual. Só sei que foram muitas... Emoções boas e ruíns marcaram-me profundamente. Sei que em algum momento dessas minhas inúmeras vidas, morri e nasci infinitas vezes, a cada situação experimentada. Vivo ou morto, reto ou torto, estou aqui para descobrir quem sou. Porque jamais quis que facilitassem as coisas para mim.
Nesta vida, que pelos meus cálculos é a minha vida de número mil duzentos e dez, surgiu-me uma cegueira, – causada pelos males da alma. Logo eu, que sempre fui temente a Deus, padeci pelos pecados do meu coração. Agora estou aqui novamente, tentando equilibrar-me, vibrar energias pouco trabalhadas, recomeçar a minha missão. E esta prova visceral, acabou criando um expiação valiosa: A cegueira do corpo. Ao nascer cego, compreendi que sem a visão; pelo olhos não seria mais enganado. Afinal, o que os olhos não vêem, o espírito transcende. E mesmo parecendo terrível passar uma encarnação inteira sem enxergar o rosto da mulher amada, sei que estou protegido de mim mesmo, e que assim, nada de pior irá me acontecer. Em minhas outras vidas, pequei muitas vezes pelo olhar: Vaidade, orgulho, gula, egoísmo, inveja, materialismo, consumismo, soberba, hedonismo; eram o recheio de minh'alma. Por isso eu era triste e minh'alma era a sombra de uma alma vazia. Mas desta vez, Deus encontrou uma forma de me proteger de mim mesmo. Sem a visão, aprendi a enxergar a mim e ao outro com os olhos do espírito. Quando nasci, meu Anjo da Guarda estava ao meu lado, segurando-me a mão. E nos momentos de profundo sofrimento, quando pensei em gritar, chorar, me desesperar, meu anjo plainou à altura dos meus ouvidos, e me disse: 'Não perturbe o silêncio do infinito. Deixe o universo descansar, caríssimo. Deus criou-nos singulares para que aprendêssemos a ser plurais. O universo não se fez num dia, tesouro de minh'alma. Digo isto para que aprendas a esperar e esperes rezando. Vigiai e orai, meu caro. E não te esqueças: As coisas boas vão e vem, mas o Deus que há em nós, permanece eternamente em nós. Não misture o mal com o bem nem o bem com o mal. Não troque o certo pelo errado. O imutável pelo mutável. Se não der para ser o pombo da paz, não queiras ser o pombo da discórdia. Pois na vida o veio principal é o amor. Para o homem sensato, não é preciso colocar a mão no fogo para saber que irá se queimar. O verdadeiro sábio é aquele que aprende com os erros do outro. Portanto, coloque um pouco de equilíbrio em sua vida e viva com elegância. Prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Não se vive por teimosia, meu caro. Mas por tenacidade. Qualquer ato que fira o silêncio do universo, é um escândalo ao olhos de Deus. Nenhuma abelha poliniza uma flor, sem que o Criador o permita. Ame a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Só assim terás a certeza da cura da alma. Não te iludas ao achar que as coisas aqui acontecem por acaso. Pois nada é por acaso. Qualquer pessoa é capaz de saber a que veio e a que se propôs ao reencarnar. Basta apenas fazer o bem sem olhar a quem' –, sentenciou a voz, segundos antes de calar-se.
'Assim tudo começou' – retorquiu a voz. Os cegos do espírito um dia enxergarão e poderão ser tudo aquilo que o Criador desejou que eles fossem. O pecado é um engodo, meu caro. Por isso não sinta-se preso a ele. Ninguém é encadeado ao mal, nem a si mesmo, se assim não o desejar: O verdadeiro amor liberta, amigo! Siga em frente... Sem medo. Olhe para trás, se a sua alma sentir saudades do que já viveu, mas lembre-se: Estamos à frente das nossas vidas. Por isso somos o ontem, o hoje e o amanhã de nós mesmos. Os covardes pararam à sombra da estrada. Nós seguimos caminhando na direção do sol.
Suicídio? Suicídio é o pior crime que alguém pode cometer. Imagine se todo mundo que tivesse um problema, se matasse? Nelson Mandela ficou preso por vinte e oito anos e não se matou. Madre Teresa de Calcutá teve dúvidas em relação a própria fé e não se matou. Édith Piaf foi abandonada pela mãe, cresceu num bordel, ficou cega, foi curada por Santa Teresa de Lisieux, perdeu a única filha vítima de meningite, teve a vida destroçada por todo tipo de sofrimento e não se matou. Cartola, o maior poeta da música brasileira, só alcançou a glória na velhice e não se matou. Esses e outros tantos, passaram por poucas e boas, e não se mataram. Porque o suicídio é o tipo de crime que não tem perdão.
A reencarnação é o cativeiro mais doce, que um espírito refém de si mesmo, poderia ter.
Bem-vindo ao Teatro dos Espíritos!
Betto, que você é capaz de transformar tudo que toca em ouro, eu sempre soube. O que eu ainda não sabia é que você era dono de uma alma tão mágica. Adoro os seus textos, amigo! Abs!
ResponderExcluirBetto, toda vez que venho ao seu blog, saio daqui um pessoa melhor. Ainda a pouco estava tão tristinha, e agora, após ler esse texto maravilhoso, me sinto com a alma renovada. Oxalá te proteja, meu Rei. Beijos!
ResponderExcluirMuuuuuuuuuuuuuito bom! Amei, Bettinho! Parabéns!!!
ResponderExcluirOi Bettão!!! Me amarro nos teus textos, fera! Este O Teatro dos Espíritos é especialmente belo. Que talento, Meu Rei! Parabéns!
ResponderExcluirEncantadoramente lindo, Betto! Você é um escritor notável! Parabéns por ser Betto Barquinn!!! Bjs!
ResponderExcluirMaravilhoso, Betto! I LOVE U!!!
ResponderExcluirAmo o seu blog, Betto! Texto lindo, gato! Beijos!
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