GOODBYE, LITTLE SUNSHINE




A gente passa a vida pregando a paz e o amor entre os homens, tenta não cometer os mesmos erros do passado, procura deixar de lado aquele sujeito triste, que não via nada mais no mundo além de si mesmo, e faz um esforço enorme para aprender a perdoar. A gente tenta... Hoje mesmo, chegando em Tel Aviv-Yafo para mais uma jornada do lançamento do meu livro, perguntei-me: Para que  tudo isso? Eu vivo dizendo às pessoas como elas devem agir, mas será que pratico 1/3 do que falo? Agora mesmo, aqui estou eu, enclausurado num terno de quinze mil dólares, olhando a vida da suíte presidencial de um dos hotéis mais caros do mundo, com a imprensa do outro lado da porta, pronta para me devorar aos pedaços. Estou envelhecendo... Hoje os sessenta anos de idade caíram-me como uma luva. Talvez esteja com medo que aquele sujeito triste, esteja parado do outro lado da rua. Não existe nada mais egoísta que ser egoísta: Aquele que foi, e voltou a ser, sem nunca ter sido. Talvez eu tenha mudado tanto, que não sinta a menor diferença. Só espero que tudo que vivi até hoje, tenha me disciplinado para o que está por vir. “Prepare-se para o pior e aceite o que vier”, – diz o biscoito da sorte. Mas o biscoito da sorte, de quem? Este aqui, encontrei-o caído na alma, minutos antes de arrancarem a medula da minha estrutura óssea. Devaneios de um homem de larga idade... Mas vamos ao que interessa: Vim à Israel para lançar o meu livro, que ensina como envelhecer com qualidade de vida, e ainda manter o frescor e a leveza da juventude. Nem sei porque escrevi este livro, mas deve ser porque estou numa fase da vida, onde preconceitos e paradigmas despem-se diariamente de mim. Hoje os velhos hábitos não me consomem mais. Sinto-me cada dia mais aterrado como aquela “Desolation Row” do Bob Dylan. Embora minhas raízes estejam intrínsecamente fincadas no solo, minh'alma parece vagar em algum lugar entre o ser e o não ser, entre o mundo dos sentidos e o mundo das idéias, vivendo incessantemente “O Mito da Caverna”, tentando distinguir o verdadeiro do falso, o semelhante do diferente, a essência da aparência, a poesia de Luís Vaz de Camões e a poesia de T.S. Eliot, a filosofia de Platão e o desterro do Hamlet de Shakespeare. Olhando-me no espelho, percebo que sou a cópia de um modelo perfeito de pessoa, que só existe no mundo das idéias. Agora vejo que sou a cópia da cópia, da cópia imperfeita de mim. Mas será que a cópia é pior que o original? Acho que não. Porque se a cópia revela as minhas imperfeições, o original é o ideal de pureza que um dia poderei alcançar. E mesmo sabendo que tal pureza significará a perda da minha própria identidade, – tenho ganas de desmaterializar. Afinal, se um dia puro for, serei irradiado pelo universo como o brilho do sol. Não serei mais singular. Serei plural. Sunshine, baby. Sunshine! Talvez algum dia compreendamos que é através das nossas diferenças que tornamo-nos iguais. E o que importa olhar-me no espelho, se o que vejo refletido, nem sou eu de verdade? Eu sou uma velha alma que de tanto viver, forjou-se num metal raro, prensado entre o corpo e o espírito. Uma alma sem corpo que habita o perispírito. Uma velha alma que substituiu as labaredas da juventude pelo fogo sagrado da eternidade. Sim, eu quero ser puro. Não quero mais conservar a minha individualidade. Quero me confundir com tudo e com todos. Porque sendo indivíduo; eu também sou egoísta. Mas no dia que for plural, aprenderei a servir a todos. E aí sim, terei alcançado aquele estado de pureza da alma, que dá leveza a vida.Segundo o gramático brasileiro, Evanildo  Cavalcante Bechara, “sujeito é o termo da oração que indica a pessoa ou a coisa de que afirmamos ou negamos uma ação ou qualidade”. Por isso não quero mais ser sujeito. Não quero que falem nada de mim... Nem de bom nem de ruím. Não quero que falem nada de mim.  Assim... assim. Mas antes de enveredar por esse assunto, no que estava falando mesmo? Ah, sim... Agora me lembro... Escrevi este livro um dia depois de ouvir Scarlet Ohara dizer em “Gone With de Wind”: “Por Deus, eu juro: nunca mais sentirei fome enquanto viver. Nem que eu tenha que mentir, trair, roubar ou matar. Por Deus, eu juro: jamais sentirei fome novamente.” Aí resolvi pensar diferente e viver dulcemente. Porque de alguma forma sei que me conhecendo melhor, poderei dar a minha contribuição. E fazer do Planeta Terra, um lugar melhor para todos. Não quero mentir, trair, roubar ou matar por um prato de comida, nem por nada nesse mundo. Ser feliz é mais simples que isso. Não tem nada a ver com viver em mansões, ter carros importados na garagem, usar as melhores grifes, ter toda a sorte de jóias, o smartphone mais caro do universo, o supercomputador da NASA, a câmera digital de um milhão de dólares, jantar nos melhores restaurantes, virar celebridade, frequentar a balada de Ibiza, dar a volta ao mundo na primeira classe das melhores aeronaves, fazer cruzeiros marítimos na cabine VIP do maior transatlântico da história, ou ter as burras cheias de dinheiro. Para ser feliz basta não praticar o mal e fazer o bem. Essa é a contribuição que todos nós podemos dar: Orar e vigiar. Não custa nada tentar, porque além de fazer um bem enorme, ainda nos enche de graça.

Assim também pensava Little Sunshine... Mas deixe-me falar um pouco sobre ela: Nos conhecemos no final dos anos 60 na antiga Lehrter Bahnhof, hoje Estação Central de Berlim, quando íamos à Hannover para uma conferência internacional sobre bullying. Todas as nações mandaram seus representantes. Os países ricos mandaram intelectuais como Little Sunshine. Os países pobres, enviaram pés rachados, como eu. E lá fomos nós, dois mamulengos do terceiro mundo, tentar vender nosso peixe  para os gringos. Eu, um jovem colombiano recém-saído das fraldas, ávido por jogar conversa fora. Ela, uma peruana formada em Harvard, apaixonada por Belas Artes: Literárias e visuais. Do terceiro mundo que eu vinha, ela já tinha saído faz tempo. Enquanto eu comia o pão que o diabo amassou, ela já havia devorado a sobremesa. Eu era um pré-graduado de dezoito anos, – com a cabeça nas nuvens. Ela era um furacão de quarenta anos, professora doutora em filosofia, com um curriculum mais longo que o Canal de Suez. Munidos de nossas credenciais,  conhecemo-nos na Estação Lehrter Bahnhof, e após um breve tempo, já havíamos nos transformado em melhores amigos de infância. Ela era muito engraçada... Atochada num macacão de couro preto, mais parecia uma bruxa embalada à vácuo. Ácida e profundamente sarcástica, lançava mão da ironia até quando estava calada. Eu, um pascácio convícto, ficava sorrindo feito um lorpa, toda vez que ela soltava um gracejo. Não entendia quase nada do que ela dizia... Enquanto ela tinha um saber imenso, meu castelo de areia escapava entre os dedos. Quando paramos de jogar conversa fora, e entramos pelos caminhos e descaminhos do espírito, ela me disse: 'Que coisa feia esse tal de bullying... É como se alguém dissesse: “Eu não gosto de você e te odeio por isso”. “Você é vermelho, verde, azul,   violeta, ciano, magenta, amarelo, laranja, oliva, turquesa, celeste, cor de rosa, roxo, cinza, abóbora, água-marinha, alizarina, âmbar, ameixa, ametista, amêndoa, aspargo, açafrão, beige, bordeaux, borgonha, bronze, caqui, cardo, carmesim, carmim, castanho, cenoura, cereja, chocolate, ciano claro, cobre, concha, coral, couro, creme, damasco, dourado, escarlate, esmeralda, feldspato, ferrugem, fuligem, fúchsia, grená, hortelã, índigo, jade, jambo, lilás, lima, limão, linho, madeira, magenta, malva, mamão batido, maná, marfim, milho, mocassim, mostarda, naval, neve, ocre, oliva, orquídea, ouro, pele, prata, preto, pêssego, púrpura, quantum, renda antiga, rútilo, salmão, seda, siena, sépia, tan, terracota, tijolo refratário, tomate, trigo, triássico, turquesa, urucum, sol, arjante, júpiter, safira, rubi, esmeralda, jacinto, morado, sanguinho, arminho, contra-arminhos, veiro, contra-veiros,... e te odeio por isso!”.  'Não sei onde as pessoas vão buscar tanto ódio'. 'Só pode ser dentro delas mesmas'. 'Todo ato violento é um pedido de socorro. Por isso chego a conclusão que o mal não está fora do homem, mas em tudo que habita o pensamento e o coração do homem. Se o homem é mau, terá atitudes e pensamentos maus. Se o homem é bom, haverá Deus em seu coração. Só um doente da alma sente prazer em humilhar o seu semelhante. Só um demente é capaz de tanta maldade. E o bullying não para por aí... Tem o bullying do homossexual contra o homossexual, que diz que é macho e não sai com afeminado. Tem o bullying do heterossexual contra o homossexual, que diz que este é pervertido por amar o mesmo sexo. Tem o bullying do homossexual contra o heterossexual, que diz que se ele provasse da fruta, chuparia até o caroço. Tem o bullying do heterossexual contra o heterossexual, que acha que amizade entre homem e mulher é Conto da Carochinha. Tem o bullying do negro contra o negro, que diz que só casando com branco que se limpa a raça. Tem o bullying do branco contra o negro, que pego por um ato falho, diz que o outro é negro de alma branca'. – 'Mas alma não tem cor, doutor!' –. 'Tem o bullying do negro contra o branco, que diz que este é branco azedo, porque tem cor de água de privada. Tem o bullying do branco contra o branco, que diz que branco que é branco tem o sangue azul. Tem o bullying do macho contra a fêmea, que diz que mulher no volante é perigo constante: Por isso mulher só deveria pilotar fogão!'. 'Tem o bullying da fêmea contra o macho, que diz que homem não chora. Donde se conclui que o problema não é do homem contra a mulher, mas do masculino contra o feminino. Do humano contra o ser humano: Desumano. Por isso não tema o diferente, garoto. No pensamento filosófico ser diferente é normal. Você só precisa tomar cuidado com as pessoas de alma bem pequena. Porque grandes almas cuidam de si mesmas. Pequenas almas, não. Pequenas almas são como sanguessugas que matam por medo de morrer. O antônimo de respeito é preconceito, garoto. O sinônimo de amor é caridade. Não custa nada ser generoso com o outro. Por que não trocar um defeito por um elogio? Mostrar ao outro o que ele tem de bom e ensinar que é através de suas qualidades que ele tornar-se-á uma pessoa melhor. Antes de sair por aí jogando pedra nos outros, as pessoas deveriam dobrar os joelhos e rezar. Com certeza pensariam duas vezes antes de agirem como irracionais. Nenhuma Ata Notarial é capaz de impedir um assédio moral. Mas faz com que o indivíduo sinta no bolso o peso dos seus atos'. Dito isto, Little Sunshine fez um minuto de silêncio. Respirou fundo. Correu os olhos pelo pano de vidro da Estação e recomeçou a falar: 'Quando saí de Puerto Maldonado para morar em Cambridge, Massachusetts, era como uma fruta ôca, um umbú azedo, que não valia nada. Depois de duas décadas estudando e trabalhando em Harvard, percebi que o meu valor não estava nos livros, mas fora deles. Quando volto ao Peru, sempre lembro-me que aquela jovem paupérrima, de dentes horríveis e seios flácidos, tornou-se uma linda mulher. Cuidei do corpo e da alma, garoto. Tornei-me alguém melhor por dentro e por fora. E agora que cheguei ao topo do mundo, não há mais nada que me faça descer. Porque a consciência é meu Grilo Falante'. Após um longo suspiro, Little Sunshine calou-se. 
   
Lembro-me que fiquei alguns minutos, fitando-a. Lembro-me que devo ter morrido umas cem vezes, ouvindo-a falar. Lembro-me que quando chegamos ao Centro de Convenções da Deutsche Messe AG Hannover, local da conferência internacional sobre bullying, eu já estava na minha décima quinta ereção. Tudo que ela falava era tão inteligente e fazia tanto sentido, que meu corpo era exposto à reações adversas. O efeito colateral de suas palavras avolumava-se sob a minha samba-canção. Desde então, eu estava, estive e estou, perdidamente apaixonado por ela.

A conferência sobre bullying foi um sucesso. Discutimos sobre os atos de violência física e psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo  ou grupo de indivíduos, com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo (ou grupo de indivíduos), incapaz(es) de se defender. Também abordamos as vítimas/agressoras, ou autores/alvos, que em determinados momentos cometem agressões, porém também são vítimas de assédio escolar pela turma. Foram cinco dias dedicados ao diálogo entre pais, educadores, alunos, políticos, religiosos  e pensadores de diversas áreas. Enquanto Little Sunshine falava para uma platéia de cinco mil pessoas, eu ficava ali calado, com a alma à flor da pele, – tendo orgasmos aos borbotões.

Casamo-nos dois anos depois, eu com vinte, ela com quarenta e dois. Saí de Bogotá, mudei-me para os arredores de Harvard, para viver com Little Sunshine, todo o amor que houver nessa vida. Ao invés de filhos; parimos livros. E foram tantos, que a nossa biblioteca tornou-se, um berçário à céu aberto. Agora estou aqui em Israel, lançando o meu mais novo best-seller:  “Recordando a Mulher que eu Amei”. Little Sunshine deixou-me no mês passado, aos oitenta e dois anos de idade, dois dias antes de completarmos quarenta anos de casados. E antes de morrer, ela me disse: 'Não me recordo um par de dias que vivi antes de ti. Por isso sei que nasci no dia em que te conheci'. Essas foram as suas últimas palavras.
Não se passaram mais de cinco minutos, desde que cheguei aqui no hotel em Tel Aviv-Yafo, para a coletiva de imprensa do lançamento do meu livro. E nesse curto espaço de tempo, a minha vida inteira passou diante de mim, inebriando os meus sentidos. Agora sim, estou pronto. Alea iacta est. Posso abrir a porta e deixar os paparazzi, a imprensa marrom, os fãs, os jornalistas sérios, os ratos e os urubus, virem me devorar.

Quando era criança, alguém me disse que todos os caminhos conduzem à Roma. Nãoera verdade... Todos os caminhos conduzem à alma. Como dizia Little Sunshine: 'Nada como um dia após o outro com uma boa noite de sono no meio. E um coração pulsando no peito, tendo a alma como recheio'. Minha amada partiu. Meu novo livro foi lançado e suas palavras não me pertencem mais. Irão viver na alma de algum leitor, como a alma de Little Sunshine vive na minha, até o dia que nossas palavras e nossas almas puderem se reencontrar. Ahora me voy a llorar...
Não se afaste de quem você gosta. A vida não espera.

Goodbye, Little Sunshine.



Bob Dylan's official site:



® GOODBYE, LITTLE SUNSHINE © copyright by betto barquinn 2011
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Comentários

  1. Amei, amei... Foi o que mais gostei até hoje... Me deixou um misto de sentimentos diferentes... Beleza e uma nostalgia (segundo o Aulete Digital: "Estado de tristeza sem motivo certo"). Estranho, não? Parabéns!!! Bjkassss.

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  2. Oi Betto! Sempre fico feliz quando leio coisas assim... As pessoas precisam ler coisas assim!!! Você toca nos paradigmas da sociedade sem humilhar ninguém. Tem o bom senso de ser poético e deixar com que os outros percebam o resto. As pessoas não pensam no quanto os nossos maus atos prejudicam a nós mesmos e aos outros. Machucamos pelo simples prazer de machucar. E quando perdemos alguém que amamos é que nos damos conta do quanto somos pequenos. E do quanto o nosso preconceito nos prejudica. Muito lindo, Betto! Obrigada por ser tão talentoso. Amo os seus textos, gatinho. Amo!

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  3. Você me deixou sem palavras, rapaz. Parabéns!

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  4. Estou encantada com esse texto, Betto! Além de lindo, você ainda é um cara muito inteligente. Beijos!

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  5. Betto, lendo os seus textos fica nítido o toque de Deus em sua vida. Deus coloca pessoas como você no mundo, para mostrar que valores essenciais à vida, são o que realmente importa. O seu talento passa pelo viés da ética, da moral, do bom senso. Talvez você nem se dê conta do quanto é bom no que faz. E a isso se dá o nome de humildade. A sua generosidade é tamanha, que faltam-me palavras para agradecer o bem que você me faz, toda vez que venho ao seu blog. Parabéns por ser gente de verdade! Ser amigo de Betto Barquinn, não tem preço. Aquele Abraço!

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  6. Muito bom, brother! Muito bom!

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  7. Catarina Albuquerque Souza e Silva20 de maio de 2011 às 05:43

    É por isso que eu amo Betto Barquinn! I LOVE YOU!

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  8. Mãe, sabe o que eu quero ser quando crescer? Eu quero ser Betto Barquinn! kkkkkkkkkkk! Abs!

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  9. Parabéns pelo aniversário de 1 ano do blog, meu amor! Bjs!

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  10. Magali Nunes Fonseca20 de maio de 2011 às 21:20

    Genial como você! Parabéns!!!

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  11. Um aninho do blog! Muito maneiro, Betto! Sou completamente apaixonada por seus textos! Bjs!

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  12. Lindo, querido! I LOVE YOU!!!

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