DON´T GO BREAKING MY HEART


Quase ‘Roda de bicicleta’, de Marcel Duchamp:

Era uma caneca como outra qualquer. Uma caneca, daquelas que a gente usa para tomar água, café, chá, refrigerante, cerveja ou suco. Uma caneca, dessas que se guarda no armário da cozinha ou na cristaleira ou deixa no escorredor de louças ou em cima da pia para depois guardar. Era uma caneca qualquer sim, mas como bem sabemos, nada nesse mundo é uma coisa qualquer. Por isso (e graças a isso), embora a caneca fizesse par com outra de sua espécie; ou outras, já que faz parte de um conjunto de canecas; que quando compradas eram pares, mas com o passar dos anos tornaram-se ímpares; dado que, infelizmente, muitas dessas quebraram; perderam-se; extraviaram: morreram. E como bem sabemos também, posto que coisa alguma é por si só uma coisa à toa; uma vez que todos nós (substantivos concretos e abstratos) trazemos aqui dentro (na parte em nós que nos torna raros no universo e que nos representa no mundo) algo de nosso; que por mais pleonástico que seja, é só nosso; e que por ser só nosso torna-nos iguais (já que todos têm algo de seu em si); e por assim dizer, é o que torna-nos diferente de tudo que existe dentro e fora de nós. Ufa! Ser uma caneca única, e ao mesmo tempo ecumênica, dá um trabalho enorme. Acabo de matar uns dois mil neurônios nesse ofício de pensar o que é ser uma caneca. Donde se conclui: o que nos torna singulares (canecas e não-canecas) é o mesmo que nos torna plurais.

Aliás, ser caneca não é fácil. É um lavor hercúleo! Quem a usa, acha que caneca não tem sentimento. Sério mesmo. Você já parou para pensar o que sente uma caneca pelo simples fato de ser uma caneca? Pode parecer loucura, mas para mim uma caneca que se preze tem as mesmas indagações dos seres humanos. Se eu fosse uma caneca, certamente me perguntaria: De onde eu vim, para onde vou, porquê cá estou? Pois um ser caneca é tão complexo quanto um ser humano. Caneca sofre, caneca chora, caneca tem problema, caneca acorda com dor de cabeça, caneca sente dor de dente e dor de garganta. Há também alegria e contentamento no âmago d’uma caneca. Caneca tem alma. Caneca pensa. E esse estar no mundo que move todas as canecas é o mesmo que aciona todas as coisas: concretas e abstratas. Uma caneca quando vai ao chão, quebra. Ou perde a asa ou solta o fundo ou racha ou macera. E isso dói. Certamente essa caneca jamais será a mesma. Porquanto há cicatrizes que ferem tanto a alma de uma caneca quanto ferem a alma da gente. Digo isso, porque a despeito de ser humano, sei o que sente uma caneca. Como eu sei? Observando. Quer um exemplo? Dou-lhe já.

Dia desses estava eu na cozinha preparando um tiramisù, deu-me sede, peguei minha caneca da Harley-Davidson e a enchi dágua. Em seguida continuei amanhando a sobremesa, por acidente esbarrei na caneca e ela foi ao rés-do-chão, reverberando como ondas sonoras e escaqueirando em lascas por todos os cantos. Vendo-a em cacos, senti uma dor tão figadal, que parecia que haviam me arrancado um braço ou houvesse morrido um parente. Só em lembrar, a tristeza volta. Aquele instante foi um pesadelo kafkiano, não só porque aquela era a minha caneca predileta, mas porquê ao ver a alma daquela vasilha expirando diante de mim, fez-me repensar tudo que vivi. Levou-me à gênese da minha própria existência. Pois a maioria nasce, cresce, amadurece, envelhece e morre. Outros, nem chegam a tanto: findam ao nascer do dia; desaparecem em um piscar dolhos; perecem à flor da idade; emurchecem sem ninguém ver; mirram desavisadamente; acabam ao final da tarde; murcham ao avistar a lua; terminam como um filme triste; partem em uma viagem sem volta; sucumbem ao pôr do sol. Ou seja, não chegam a um final feliz. Assim se deu com minha caneca de estimação. Por descuido meu, acabou como perfazem todas as coisas que partem antes da hora: estiolou precocemente.

Por isso, creio que as canecas pensam, sim. Pensam e sentem e alegram-se e sofrem e amam e antipatizam e esquecem e remembram e aquiescem e interdizem como todos nós: substantivos concretos e abstratos. Decerto as canecas reconhecem que há em si uma vida. Algumas até, creio eu, acreditam em Deus. Outras, se pudessem, leriam Anaïs Nin, Bernard Shaw, Carlos Drummond de Andrade, Charles Bukowski, Clarice Lispector, Denis Diderot, Eça de Queiróz, Ernest Hemingway, Fernando Pessoa, Fiódor Dostoiévski, George Eliot, George Orwell, Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Gustave Flaubert, Henry James, Hermann Hesse, H. L. Mencken, Honoré de Balzac, Isaac Asimov, Jack London, James Joyce, J. D. Salinger, Jorge Luis Borges, João Guimarães Rosa, Johann Wolfgang von Goethe, Joseph Conrad, Jules Renard, Julio Cortázar, Karl Kraus, Kurt Vonnegut, Liev Tolstói, Laurence Sterne, Louis-Ferdinand Céline, Luigi Pirandello, Mark Twain, Miguel de Cervantes, Nelson Rodrigues, Nikolai Gógol, Oscar Wilde, Ralph Waldo Emerson, Robert Louis Stevenson, Robert M. Pirsig, Robert Musil, Sylvia Plath, Umberto Eco, Vladimir Nabókov, Victor Hugo, Voltaire e William Shakespeare. Certamente há aquelas que gostam de Cândido Portinari, Caravaggio, Cézanne, Van Gogh, Pablo Picasso ou Salvador Dalí. Como há quem goste de ‘Don´t Drink the Water’ e outro de ‘O Cão Andaluz’. 

Em suma, eu tive uma caneca que parecia gente. Infelizmente, como acontece com todas as coisas concretas e abstratas, ela morreu. O que me leva a crer: a vida é uma assemblage com trinta e duas canecas de alumínio, criada por Arthur Bispo do Rosário.      


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Comentários

  1. Leandro Oliveira de Albuquerque Figueiredo7 de janeiro de 2015 às 08:24

    Genial, Betto Barquinn! Texto impecável. Meus parabéns. Vida longa ao Rei!

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