MARGOT DE PEDALINHO
Ele havia saído de casa no Sábado de Aleluia para comprar cigarros, e até hoje tinha ido, – e não mais voltado. Ele era assim... Tão cabeça de vento, que só não perdia a cabeça, porque estava presa no pescoço. A esposa, muito preocupada com o sumiço do marido, esperou por ele por mais de um ano – sentada no portão. O que havia acontecido? Onde será que ele tinha ido? Morto, de certo não estava, porque se morto estivesse; ela saberia. Tinha um sexto sentido tão aguçado para a morte, que adivinhava quem iria morrer, com dez anos de antecedência. Era tão boa nisso, que meses antes da pessoa morrer, lá estava ela, com uma coroa de flores na mão, e um copo de conhaque na outra, – bebendo o morto. 'Morto, não!'. 'Morto, não estava' – pensou. Mas se morto não, onde estaria? Não sabia... O marido era um moço tão bom, que deveria estar preso. Aliás, era um preso tão bom, que deveria estar moço. Se atrapalhava toda ao falar do marido... Mas o importante é que ele deveria estar bem, afinal notícia ruím chega logo. E sobre ele, havia mais de dois anos, que não chegava nada.
Cinco anos depois do marido sumir, ela ainda estava lá... sentada no portão. Os cabelos ficaram brancos. A pele encarquilhou. Os olhos tristes de dar dó, ficaram estáticos, paralisados mesmo, à espera do seu amor. Ela estava tão seca, um gravetinho que só, porque não comia nada. Anorexia? – perguntavam. Jejum, talvez? Greve de fome? Algo ligado à paz mundial?! Ou, a dieta da moda? Medo da balança? Ditadura da magreza? Ninfomania? Bulimia, quem sabe... Mas a verdade não era nada disso... Saudade: era a resposta.
Cansada de esperar por ele na porta de casa, num rompante de medo e covardia, levantou-se e saiu correndo. Deve ter corrido umas mil léguas. Correu tanto que gastou a sola dos sapatos. Correu tanto que deixou cair um braço. Correu tanto que viu perder um olho. Corria descabelada, sem roupa, meio torta, meio nada. Depois de meio século correndo, quinhentos anos se passaram. Cansada de tanta correria, resolveu parar pelada às margens de uma baía. E lá estava ele... Não o marido, mas um pedalinho. Então Margot cavucou o canto dos bolsos em busca de uma moeda. Não achou nada. Cavucou mais fundo ainda, e mesmo assim, ainda nada. Duas horas depois percebeu que estava nua, então se nua estava, bolsos não tinha. Fechou os olhos e desejou uma moeda, do fundo do coração. De certo lá, entre uma artéria e outra, deveria haver um cantinho de bolso – onde guardar uma moeda. Pediu a Deus paciência. Respirou fundo. Procurou mais um pouquinho, e sortuda que só, encontrou entre a Valva Mitral e a Aorta, uma moedinha de ouro. Aliviada, correu para o moço que alugava o pedalinho e perguntou quanto custava. O rapaz, muito esperto, respondeu: 'Custa só uma moeda de ouro!'. 'Pois bem' – ela disse. 'Passe para cá este pedalinho!'.
Margot saiu navegando e navegando. Dez anos depois já havia cruzado a Costa do Marfim. De pedalinho conheceu Paris. De pedalinho foi à Venezuela. E Machu Piccu. E Shizuoka. E Catolé do Rocha. Pedalou tanto que percebeu que todos são iguais e têm sentimentos parecidos. E mais do que isso... Percebeu que ser diferente é normal. Afinal, somos todos iguais, apesar das nossas diferenças. Percepções à parte, Margot pedalou tanto, que gastou as pernas. Como só tinha um braço e um olho, continuou a pedalar com o que lhe havia sobrado. Embora fosse míope, com um pouco de esforço, ainda conseguia enxergar alguma coisinha... Foi então, que após mil e seiscentos anos procurando o marido, o viu atravessar a rua, com um cigarro-de-cravo entre os dedos. Aliviada, saiu pulando num cotoquinho de perna, feito um Saci pós-moderno, e apoiada numa vassoura, abriu-lhe o braço, para abraçá-lo. O marido, a princípio, não a reconheceu. Quando saira de casa para comprar cigarros, ela era uma jovem. E hoje, quase dois mil anos depois, não passava de uma velha gaiteira. Mas com um pouco de boa vontade, Satiríase (assim chamava-se ele) foi juntando os caquinhos da memória, e depois de quase quatrocentos e cinquenta anos pensados – lembrou-se como era a fisionomia dela a dois séculos atrás. Depois de se abraçarem até quase esfarelarem, ela muito emocionada, perguntou:
– Onde você estava, meu amor?
Ele respondeu:
– À sua procura, paixão!
Vendo-a com a vassoura na mão, prolífico de curiosidade, perguntou:
– O que faz com essa vassoura na mão, coração? Vai varrer a rua ou está se preparando para voar?
Dito isto, o tempo passou. E viveram felizes para sempre.
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
Oi amor da minha vida! Betto, querido, os seus textos são muito bons! Amei, gatinho! Amei!
ResponderExcluirkkkkkkkkkkkkkk! Muito bom!
ResponderExcluirCara, você é uma pessoa tão especial, que o seu texto me deixou sem palavras. Genial, Betto!
ResponderExcluirVanessa da Mata e Betto Barquinn... TUDO DE BOM!
ResponderExcluirMaravilhoso, Betto! Ma-ra-vi-lho-so!!!
ResponderExcluirMargot de Pedalinho!!! Adorei....fiquei com pena que acabou...queria mais!
ResponderExcluirBeijossssssssss.
Muito bom, Betinho! Muito bom!
ResponderExcluirVocê é um gênio, cara. Fantástico o seu texto. Parabéns!
ResponderExcluirAmo você, Betto! Beijos!
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