ORFEU, EURÍDICE, RITA HAYWORTH E EU




Embora não me chame Orfeu, sempre quis que a Rita Hayworth fosse a minha Eurídice. Já nasci apaixonado por ela, como se nos conhecêssemos de outras vidas. Lembro-me que a primeira vez que a vi foi em Gilda, um filme-noir de 1946, onde ela contracena em preto-e-branco com Glenn Ford. Eu, muito enciumado, saí do cinema odiando Johnny Farrell, a personagem do Glenn, só porque o cara beijara Gilda, vivida por Rita, deixando ambas de coração partido. Já que não acredito em beijo técnico, naquele instante desejei coisas horríveis para o Glenn. Como ele ousava beijar a mulher da minha vida, numa tela de cinema, para o mundo todo ver? Um absurdo! Mas acabei relaxando no final do filme, ao perceber que Gilda não era minha nem do Glenn, nem do Johnny nem de ninguém; afinal: “Nunca houve uma mulher como Gilda!”.


Foram dias memoráveis aqueles que passei com a Rita no corpo de Gilda e vice-versa. Embora fosse apaixonado por Gilda; amava Rita. E para não ter que escolher entre uma e outra – ao assistir “Quando os Deuses Amam” (Down to Earth), deixei Gilda ir embora. Naquela noite, com os olhos rasos d'água, muito emocionada e até certo ponto agradecida por eu ter ficado com ela e não com a outra, Rita desabafou: "A maioria dos homens se apaixona por Gilda, mas acorda comigo".



Quando vivi na Idade Média, li sofre Orfeu, poeta e músico, que segundo a mitologia grega foi o tocador de lira mais talentoso que já existiu. Foi aí que conheci Eurídice. Naquele dia, emocionado pelo canto de  Orfeu, imaginei o lirista encantando à musa Calíope, os pássaros, os animais selvagens, às árvores, o vento, os argonautas,  Jasão, às sereias, à Eurídice, às nove ninfas, o barqueiro Caronte, o rio Estige, Cérbero, Hades, à deusa Perséfone, o rio Hebro, o monte Olimpo e os deuses, de Apolo ao infinito, atraindo o ódio e a inveja de Aristeu e das Mênades, que acabaram como velhos carvalhos – mortos e secos, caídos ao chão. Assim conheci Eurídice, uma mulher tão bonita quanto Rita Hayworth, que mexeu com as nano-paredes do meu coração, sem que preciso fosse atravessar-lhe um dedo.



Após ler Orfeu, fui apresentado em Veneza por Alessandro Striggio (libretista, músico, jurista e diplomata italiano) à Ópera L'Orfeu no ano de sua estréia, em 1607. Nessa época morava na Itália, e amigos em comum apresentaram-me a Claudio Monteverdi (compositor, maestro, cantor e gambista) em Cremona, no Ducado de Milão. “L'Orfeu” de Monteverdi é uma ópera de cinco atos precedidos por um prólogo, e é considerada uma das primeiras obras catalogadas como ópera. Vale a pena conferir!    



Quando assisti em 1956, Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, lembrei-me da história original de Orfeu e Eurídice, emocionando-me novamente.  A peça é linda, com música de Antônio Carlos Jobim, letra do próprio Vinicius e cenários de Oscar Niemeyer, transportada da mitologia grega para o Realismo de Machado de Assis, como se fora “Memórias Póstumas de Bráz Cubas”, indo desaguar no Parnasianismo das favelas cariocas – deixando o espectador a ver navios. Havia um de nós lá no palco. Entre tantos, ao menos um que se parecesse conosco. Alguém que seria idêntico a nós, se não fosse nós mesmos.  Ou seja, aquele que seria o reflexo da nossa alma, se não fora a própria: Alguém em nós, se não fôssemos nós. E  nós, novamente a ver navios, à flor da pele. Orfeu da Conceição é daqueles musicais que a gente leva para sempre gravado na alma. Lindo! Lindo! Tão emocionante e real, que mais parece um Conto de Fadas – que de real, não têm nada. Naquela noite, ao deixar o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, soube que depois de Orfeu, nunca mais seria o mesmo. O mito já havia mudado a minha vida lá atrás – quando o conheci na tragédia grega. Agora, depois de tanto me emocionar com sua história, acabara acreditando que era ele: Um pouco menos amado. Um pouco menos trágico. Mas sem dúvida alguma, cada dia mais apaixonado. Assim fomos, Rita Hayworth e eu, para longe do teatro, para darmos início ao próximo capítulo de nossas vidas.




Voltando ao cinema, outra cena memorável da minha vida, foi quando Rita e eu fomos em 1959 à première de Orfeu Negro, lançado na França com o título de “Orphée Noir”, na Itália como Orfeo Negro”, e na América do Norte como Black Orpheus”, dirigido por Marcel Camus. O filme é um clássico! Inspirado em Orfeu da Conceição, a narrativa acontece no Rio de Janeiro durante o carnaval, tendo como locação principal, uma favela em Santa Teresa. O drama vivido mais uma vez por Orfeu e Eurídice, conta a história dela: que mudou-se do sertão nordestino para viver na favela com a prima, Serafina (interpretada pela talentosíssima Léa Garcia), e dele: um malandro carioca, maquinista de bonde, sujeito honesto e trabalhador, aspirante à violonista, e sambista nas horas vagas.  Tanto Breno Mello (ator e ex-jogador de futebol, que faz Orfeu), quanto Marpessa Dawn (atriz norte-americana, radicada na França, que vive Eurídice), deram um show de interpretação. A Eurídice do filme, foge para o Rio de Janeiro, temendo às investidas de um admirador violento que quer matá-la. Tentando evitar uma tragédia, ela se esconde no barraco da prima Serafina, mas não sem antes conhecer Orfeu no bonde, na Cinelândia, durante o carnaval. Vários acontecimentos tornam impossível o romance de Orfeu e Eurídice. O primeiro é que Orfeu é noivo da bela e sedutora Mira, personagem vivida pela atriz Lourdes de Oliveira. O segundo e mais difícil de resolver, é que o tal admirador de Eurídice (vivido pelo ator Ademar da Silva, que faz o papel da Morte), chega ao Rio de Janeiro e a persegue o tempo todo. Isso tudo somado ao imponderável, faz com que o romance dos dois seja um verdadeiro inferno. O carioca Orfeu e a nordestina Eurídice, sofrem bastante. Depois de viverem uma odisséia ao som de Manhã de Carnaval, na voz  de Agostinho dos Santos, e serem presenteados com composições de Tom Jobim, Luiz Bonfá, Vinicius de Moraes e Antônio Maria, acabam mortos. O filme é muito mais interessante e emblemático que esta pequena narrativa dos fatos, que mesmo sendo breve, serve para deixar a todos com água na boca. E o paladar – com um gostinho de quero mais. Vale a pena assistir e vale a pena ver de novo. Pois certamente, Orfeu Negro é uma obra prima do cinema mundial – ganhador da Palma de Ouro em 1959 no Festival de Cannes,  do Oscar e do Globo de Ouro em 1960 nos Estados Unidos, e do BAFTA em 1961 no Reino Unido. Posto isto, tenho dito! Assim, Rita Hayworth e eu, caminhamos para o final do prólogo de nossas almas. Agora sim, ei-lo dito. Ou por quê não dizer, herudito? Digo-o, então: Herudito! Se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. Enfim... Sigamos.




Em 1999, doze anos após a morte de Rita Hayworth, fui ao cinema, dessa vez sozinho, assistir à estréia de Orfeu, releitura de Cacá Diegues para o clássico, vivido por Toni Garrido no papel título, e Patrícia França, como Eurídice. No filme, Orfeu é um popular compositor de uma escola de samba. Morador de uma favela, ele conhece Eurídice – uma moça que muda-se para o local. Antagônico a estes, está Lucinho (interpretado por Murilo Benício), traficante que acaba com a vida do casal. O filme é  bom, mas naquela altura da minha vida, sem a Rita, tudo perdeu o sentido. Saí do cinema como entrei: Nú. E lá fui eu, despido de mim mesmo, caminhando para o inevitável destino de nós mesmos: A morte, você diria. Não – respondo eu. A solidão, talvez. Mas não acredito em pessoas sós no universo. Porque quando o amor invade a alma, tudo ganha outro sentido. Neste caso, a solidão seria um paliativo para o meu drama. Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que perdure, prefiro dizer: Segui caminhando para o inevitável destino de nós mesmos: A solitude.  



Após um momento de privacidade e reflexão, voltei para os braços de minha amada: Rita Hayworth, de “Criminosos do Ar (Criminals of the Air) à “A Ira Divina (The Wrath of God), viveu mulheres inesquecíveis em quarenta e nove filmes, sem contar os dez filmes que fez sob o pseudônimo de Rita Cansino. Definitivamente, na vida e na arte, Margarita Carmen Cansino, minha 'Dolce Rita', foi, é e será, a mulher que eu amei.


Quando saiu de cena em 14 de maio de 1987, aos sessenta e oito anos, vítima do mal de Alzheimer, minha 'Dolce Rita' era bem diferente daquela menina do Brooklyn – que nasceu e morreu em Nova Iorque. Minha querida passou de dançarina à estrela de Hollywood, trabalhando em casas noturnas, bares e teatros, até chegar à Fox, aos filmes independentes, à Columbia Pictures, à MGM, à Warner Bros, entre outras produções nos Estados Unidos e Europa. Nesses muitos anos de trabalho árduo, minha amada mudou o visual de castanho para ruivo, ficou loira, voltou a ser ruiva, casou-se cinco vezes, separou-se outras cinco, teve duas filhas, e tornou-se a mulher mais bonita da história do cinema. Trabalhou com astros e estrelas do quilate de Joan Crawford, Fredric March, James Cagney, Olivia de Havilland, Tyrone Power, Linda Darnell, Fred Astaire, Gene Kelly, Glenn Ford, Orson Welles, Stewart Granger, Jose Ferrer, Frank Sinatra, Kim Novak e com Robert Mitchum, com quem fez o seu último filme “A Ira Divina” (The Wrath of God) em 1972.


Semana passada, visitando-a no Cemitério de Holy Cross em Culver City, Califórnia, presenteei-lhe com rosas vermelhas – para provar-lhe que o amor verdadeiro, não acaba. Saí do cemitério em silêncio, porque o silêncio é o único que não nos deixa sós. Desde então, sigo vivendo mais um capítulo da minha vida, certo de que um dia nos reencontraremos. Afinal, o que está na alma e no coração, nem a morte separa.



Desde a primeira vez que reencarnamos, o tempo passou. E nós, desde o dia que nascemos, envelhecemos. Breno Mello morreu em 2008, aos setenta e seis anos. Marpessa Dawn, também morreu em 2008, com aproximadamente setenta e quatro anos. Toni Garrido e Patrícia França, vão muito bem; obrigado. E eu, um mero espectador, sigo vivendo. Relembrando os meus anos dourados, onde o amor era sentimento que não tinha fim. Com o passar dos anos, entre mortos e feridos, salvamo-nos todos. E assim o círculo mais uma vez se completou.



(Breno Mello)


(Marpessa Dawn)

(Patrícia França e Toni Garrido)





Hoje, Rita e eu continuamos nos amando, mesmo estando tão distantes um do outro. Apaixonados sim, como no primeiro dia, quando nos conhecemos naquela sala de cinema com poltronas de couro vermelho, em Los Angeles. Mesmo Rita estando morta, a vida é eterna e o espírito é infinito. Portanto somos a prova viva, de que novamente, o amor venceu a morte.





Esta é a história de um homem negro apaixonado por uma mulher branca. Outrora, castanha. Derradeira; ruiva. Amo e sempre amarei Rita Hayworth: 'Minha Dolce Ruiva'. Embora também ame as negras, as mulatas, as loiras e as morenas, e também as amarelas, vermelhas e azuis, de todas as cores; 
evidentemente.





Dedico estas mal traçadas linhas ao mito de Eurídice. E a todas as mulheres, de Eva à Rita Hayworth, de Chiquinha Gonzaga à Dalva de Oliveira, de Amélia à presidenta da República, de Maria de Nazareth à minha mãe. Amado por elas, sinto-me profundamente afortunado. Porque é das mulheres que vêm às bençãos de Deus. E a maior prova disso, é que sem uma delas, eu não estaria aqui para contar esta história.

Orfeu, Eurídice, Rita Hayworth e eu.


FIM















































® ORFEU, EURÍDICE, RITA HAYWORTH E EU © by barquinn 2011
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN

Comentários

  1. Betto, mais uma vez você mostra a que veio. Que talento, menino! Parabéns Betto! Beijos!

    ResponderExcluir
  2. Betto, você é um escritor notável. Leve, inteligente, contemporâneo, sofisticado, histórico, atemporal, genial! Peço a Deus todos os dias em minhas orações, para que seus dias sejam sempre muito felizes. Você merece toda a felicidade do mundo, meu amor. Sucesso!

    ResponderExcluir
  3. Maravilhoso, Betto! Cara, você é 10! Abs!

    ResponderExcluir
  4. Luiz Antônio Roquette-Pinto11 de março de 2011 às 14:43

    Betto, essa crônica é um sucesso como tudo que você faz. Adorei, rapaz! Abraço!

    ResponderExcluir
  5. Perfeito, Betto! Parabéns pelo ótimo texto. Abs!

    ResponderExcluir
  6. Você é um gênio, meu querido! Um gênio!

    ResponderExcluir
  7. Faaaaaaaaaala Betto! Cara, muito bom esse texto. Você é um escritor completo. Felicidades, fera!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

ETERNAMENTE ANILZA!

PRESSENTIMENTO

COLOQUE O AMENDOIM NO BURACO DO AMENDOIM