CARIOCA DA GEMA
Ele caminhava descompassadamente como quem fosse tirar o pai da forca. Atravessou a rua com o sinal aberto sem sequer olhar para os lados. O tempo parecia parar ao vê-lo passar. Vinha com os braços abertos como quem quisesse fazer um afago na própria alma. Tinha os olhos azuis, de um azul tão profundo, que quem passasse por ele, mergulharia no oceano do amor de Deus. Havia caminhado desde a Central do Brasil — onde saltara do trem vindo de Jardim Gramacho. Saíra de casa trajando um trapo em farrapos, chinelos de dedo, um largo sorriso no rosto e a alma nos lábios. Era um espírito errante e sabia que hoje precisava caminhar. Assim, acordou cedo, colocou os pés no chão, levantou-se, abriu a porta de casa e saiu. “Há uma missão na vida de cada um de nós” — pensou. ”Ninguém nasce por acaso. Todo mundo é único e por isso é tão especial”. Sendo assim, decidiu entrar naquele trem e caminhar. Ao atravessar a Rua da Carioca, esqueceu qual era o sentido da vida. Parou. Estava em frente ao Convento de Santo Antônio. Ao invés de observar a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência e seu entorno, olhou para o céu. E é aí que eu entro nessa história.
Gentileza era um homem bom: Um profeta. Trazia numa das mãos um catavento e um poema amarrotado, na outra. O que aquele homem barbudo, quase um avatar de Jesus Cristo, queria? Naquele instante no Largo da Carioca, olhei para o azul profundo dos seus olhos, e compreendi como é importante ser simples nessa vida. Olho azul como o céu azul. Eu era feliz e não sabia. Ele era um sábio e não esmaecia. Estávamos ali um de frente para o outro — observando em nós, o que havia em nós. Ficamos alguns minutos em silêncio. Sabíamos que o silêncio seria o companheiro de uma vida. Passaríamos todos os momentos da nossa biografia, alegres ou não, mergulhados no oceano de nós mesmos. E era importante preservar em nós, essa felicidade compulsória, que insiste em chegar quando não precisamos mais dela. Como dois homens pobres que somos, tínhamos muito pouco a oferecer aos materialistas. Quase nada. Quando o muito em questão era algo material, não tínhamos nada mesmo. Só podíamos doar o nosso amor e a nossa alma. Mas isso era tudo o que eles não queriam receber. Éramos duas pessoas comuns, com uma cabeça de vento enterrada no pescoço, dois braços secos, duas pernas tortas, um tronco quebrado no meio e um coração no recheio. Sonhadores que só, acreditávamos na humanidade tão intensamente, que achávamos que tínhamos sorte, até mesmo quando estávamos com dor de dente.
Olhei para o céu da foto e vi uma gaivota. A vida passou por mim num segundo nas asas da gaivota. Havia uma nuvem enorme no céu da foto. Uma imensa nuvem entre mim e a gaivota. Naquele momento éramos todos um só corpo: O céu, a foto, a gaivota, a vida, a nuvem, o profeta e eu.
Gentileza entrou na minha vida pela porta da frente. Abriu-me os braços com tamanho afeto, que se até aquele momento não éramos amigos, passamos a ser. Quando interrompemos o silêncio e pedimos ao vocábulo que se materializasse em verso e prosa, experimentamos o sabor do não dito. Descobrimos o prazer de caminhar com a palavra. O profeta tinha na alma aquilo que mais admiro nas pessoas: Amor. Fazia da caridade a sua razão de viver. Homem vestido de santo, doce, sábio, gentil; onda sonora que faz sanar a dor. Silenciador. Naquele momento mergulhado no azul dos seus olhos, olhando para o céu da foto, senti uma paz tão profunda, que esqueci-me do tempo. E o tempo parou. Ao esquecer de passar, ao tempo restou ficar ali pasmado, fitando-nos. “O tempo de Deus é outro” — disse o profeta. “Vejam só… Estamos os três aqui parados, o tempo, você e eu, de frente para a mais carioca das ruas, com toda essa gente ao redor. Viver é mesmo um privilégio! Acho todo mundo bonito, porque o que vejo, são almas em busca de si mesmas. Essas almas são o bem mais precioso que Deus colocou no universo. Vejo a bondade nos olhos de todas essas pessoas. Todos, sem solução de continuidade, possuem um potencial infinito. Podem ser o que quiserem ser, porque são anjos em miniatura. Falo aqui de oportunidade, solidariedade, perdão, legalidade, caráter, fé, generosidade, humildade, delicadeza, ética, moral, credibilidade. Falo daquilo que a sociedade pode ser e ainda não é. Falo de esperança. Não falo de religião. Falo de filosofia. Olhando nos seus olhos, meu rapaz, descobri que o sentido da vida é viver. Não importa o que venha depois. Não importa o quanto uma pessoa consiga juntar debaixo do colchão ou na conta bancária. Porque a verdadeira riqueza do homem está no seu interior. Afinal, ninguém leva nada dessa vida, além de si mesmo”.
Tem dias que nos batem à porta e entram sem pedir licença. Dias de um lirismo tão impressionista que transformam pleonasmos em hipérboles.
Enquanto Gentileza e eu conversávamos sobre nossa vida de escambos e trocas — dialogando sobre ações transformadoras para um mundo melhor, uma senhora passou por nós e abraçou-nos. Um maratonista deixou de lado a pressa e uniu-se ao nosso abraço. Um camelô largou a sua banca e abraçou-se ao nosso 'happening'. Um trapezista assobiava uma canção de amor, abraçado a duas moças. Um advogado colocou os processos no chão, e de mãos vazias, enlaçou-nos com seus braços. E junto com ele veio um médico, um halterofilista, um gari, um mecânico, um jornalista, um controlador de voo, uma empregada doméstica, um artista plástico, um catador de lixo, um taxista, um escritor, um porteiro, um sociólogo, um astronauta, uma atriz e um professor de matemática. Um morador de rua perguntou se podia engraxar o meu sapato, enquanto me abraçava fraternalmente. Deixei. Foi aí que percebi que estava descalço. Mas já era tarde demais… Com os pés atolados em graxa, compreendi que há momentos na vida, que temos que deixar o outro fazer o seu trabalho. Passado alguns segundos, uma jovem grávida juntou-se ao nosso grupo — abraçando-nos a todos. Duas horas depois éramos uma multidão de almas esparramadas no meio da rua. Gentileza falava sobre gentileza. Disse-nos que precisávamos aprender a ser gente. Pediu que amássemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. “Amor deve ser considerado como investimento, e não custeio. Esse é o legado que devemos deixar para o futuro” — disse. Explicou-nos que fazemos parte de uma única raça: A humana. E que somos todos iguais, apesar das nossas diferenças.
O Largo da Carioca ficou pequeno para tanta gente. Naquela noite deu no jornal que éramos tantos, que poderíamos fundar uma nação. “Afinal”, disse o repórter: “Se 'gentileza gera gentileza', então Gentileza também é uma forma de amar”.
O Rio não seria uma cidade tão maravilhosa, não fosse a alma dessa gente, carioca da gema.
*Foto: “Nuvem sobre o Largo da Carioca”.
Autoria de Márcia Foletto.
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TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
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Que bom que eu cheguei a tempo para brindar o seu conto, ainda no dia de hoje. Emocionante, Betto. Fico impressionada com o seu talento, menino. Parabéns!
ResponderExcluirSimplesmente maravilhoso! Vida longa ao Rei!
ResponderExcluirAdorei!!!
ResponderExcluirMuito bom conhecer o seu blog! Percebo aqui tanto talento, tanta qualidade literária, que me encho de orgulho em saber que você é um escritor brasileiro. Esse conto é lindo! Mensagens como esta devem ser o mote das relações humanas. Precisamos de artistas como você, que nos dão a energia para continuarmos vivos. Deus te abençoe!
ResponderExcluirSimplesmente maravilhoso! Parabéns!
ResponderExcluirAdorei!
ResponderExcluirLindo esse conto, Bettito! Amei!
ResponderExcluirSUCESSO, MEU AMOR!
ResponderExcluirLindo, Betto! Esse conto é bem a cara dos cariocas. Vocês são o povo mais iluminado que existe. Estamos com saudades de ter você aqui conosco em São Paulo. Assim que puder, venha nos visitar! Beijos!
ResponderExcluirSe existe alguém que é unanimidade entre os meus amigos, esse alguém se chama Betto Barquinn. Um cara talentosíssimo com nome e sobrenome!!! Todo mundo que eu conheço fala muuuuuuuuuito bem de vc. Cara, vc é demais! Que conto maneiro, Betto! Que blog legal, cara! Parabéns! Abs!
ResponderExcluirBetto, vir ao seu blog é como ir a Disney World! O seu blog é um verdadeiro parque de diversões. Literatura de qualidade, fotos lindas, texto impecável, vídeos maravilhosos, muita energia positiva, design moderno, muito estilo... O seu blog é tudo de bom, Betto! Adorei esse seu CARIOCA DA GEMA! Sucesso, meu lindo!
ResponderExcluirBetto, você é um escritor formidável. Um ator formidável. Um amigo formidável. A impressão que me dá é que tudo que você faz e é se expressa de modo formidável. Você é do tipo de pessoa que só em olhar nos seus olhos a gente sente confiança. Seu bom caráter é fora do comum, meu caro. Esse blog e seus textos são de fato formidáveis. Amei estar aqui. Virei sempre! Sucesso, caríssimo. Sucesso!
ResponderExcluirBetto, este conto é maravilhoso! Escrever se baseando apenas numa foto... Bárbaro! Parabéns!!!
ResponderExcluirEstou aqui café em punho e blog de Betto Barquinn na outra mão. Fiquei encantado com esse seu conto, Betto. Lúdico, real, profissional, delicioso. Um texto muito bom para ler, deitar e dormir. Seus textos encantam pela doçura e pela generosidade. Seu coração aparece exposto neste e em todos os outros textos que tive a oportunidade de ler. Um cara tão bacana como você, gentil e despretencioso, só poderia escrever tão bem assim. Um cara tão humilde, que acho que nem mesmo você, percebe o quanto é talentoso. Você é a pessoa mais educada que conheço. Um gentleman! Em meio aos seus muitos “obrigado” e “por favor”, vai vivendo com muita generosidade. Tal qual esse Profeta Gentileza do texto... Agora que fiz o meu desabafo do dia, posso dormir e sonhar. Boa noite, Betto!
ResponderExcluirLindo conto, meu tesouro. Adorei!
ResponderExcluirAmei esse conto, Bettinho! Bjs!
ResponderExcluirGENIAL, BETTO! I LOVE IT!
ResponderExcluirBetto, esse seu “Carioca da Gema” é muito maneiro. Adoro escritor assim... Capaz de prender a atenção do leitor até o último segundo. Muito talentoso você, Mister Barquinn. Sou seu fã, meu rei! Parabéns!
ResponderExcluirAMEI!!!
ResponderExcluirMuuuuuuuuuuuuuuuuito bom! Parabéns!
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