SHAKESPEARE DECAPITADO
Otelo, o Mouro de Veneza (no original, Othello, the Moor of Venice) é uma obra de William Shakespeare escrita por volta do ano 1603. A história gira em torno de quatro personagens: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza), sua esposa Desdêmona, seu tenente Cássio, e seu sub-oficial Iago. Por causa dos seus temas variados — racismo, amor, ciúme e traição — continua a desempenhar relevante papel para os dias atuais, e ainda é muito popular.
O teatro abriu e o público começou a entrar na imensa caixa. O frisson da estreia causava em todos nós, a certeza da dúvida. Sabíamos que como aquele galo que cantara na noite da morte do Cristo, a sirene iria tocar três vezes. Primeiro toque. Segundo toque. Terceiro toque. Platéia em silêncio. E dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! O espetáculo começa. Merda!
O espetáculo começou e nós ficamos matutando sobre quem iria beber o morto. Meia hora depois de aberta a quinta garrafa de destilado, estávamos tão bêbados que mal podíamos honrar as nossas próprias calças. Havíamos decorado o texto com tanto afinco e repassado cada cena até a exaustão do Quinto Ato. Ensaiamos tanto, que mesmo no escuro, encontraríamos a deixa que nos levaria ao final do espetáculo.
Eu fazia o papel do Mouro de Veneza, o tal que ia ter com Desdêmona, e se enlaçar com ela até as últimas consequências. O elenco fazia parte da Companhia de Teatro de Sir Philip Sidney, judeu-alemão criado na Inglaterra, que veio para o Brasil em meados dos anos 1940, fugido dos horrores da guerra. Em São Paulo fez fama e fortuna, sendo considerado por décadas, o melhor tradutor e dramaturgo especializado em Shakespeare, em solo tupiniquim. Um gênio!
Quando começávamos a ensaiar um novo espetáculo, Sir Philip Sidney dizia que todo ator devia ser biodegradável. Só assim, morta a personagem, estaria pronto para outra. Segundo ele, para vencer na vida artística, todo ator devia ser amante do seu diretor: “Esse é todo “QI” que um ator precisa!” — exclamava. E com o sorriso nos lábios, completava: “Para se chegar em algum lugar nesse mundo, nem sempre é o que você conhece que importa. Na maioria das vezes, é quem você conhece, que faz toda a diferença”. Fantástico! Por isso quando me perguntam se eu já fui para cama com alguém para conseguir os melhores papéis, eu respondo: “Sou o protagonista, não sou? Então…” Adendo posto, voltemos ao espetáculo… Com os atores bêbados, caindo pelas tabelas — a cortina abriu-se no tempo de um aplauso, arrastando-nos invariavelmente ao calabouço das paixões. O primeiro ator contou até três e entrou em cena. O segundo fez o mesmo, equilibrando-se na coxia para se manter de pé. Em pânico, sorveu em um gole só todo o álcool e todo o ar da garrafa de destilado, apoiando todo o peso do corpo no pé direito. Entrou no palco bastante trôpego, como quem tivesse acordado com o pé esquerdo. Mas deixemos os detalhes de lado e vamos ao âmago da questão.
No início do PRIMEIRO ATO, Iago, alferes de Otelo, conversa com Rodrigo numa rua em Veneza, matutando sobre a possibilidade de irem ter com Brabâncio, e avisá-lo que Desdêmona, sua filha, havia fugido de casa para casar-se com o Mouro. Iago, invejoso que só, destila seu veneno habitual sobre tudo que têm alma e se mexe nesse mundo. E pensando em futuros planos de vingança contra Otelo, deixa escapar entre dentes, que acha absurda a escolha de Miguel Cássio como novo oficial e braço direito de Otelo. 'Se Miguel Cássio não tivesse atravessado o meu caminho — pensa — o posto de tenente seria meu!'. Ao chegarem a casa de Brabâncio, Iago resolve interromper o silêncio da noite — envenenando seus prazeres. Rodrigo, sem perceber, já está envolvido nessa teia até a raíz dos cabelos. Seduzido por Iago, grita à janela de Brabâncio, acordando-o: 'Ladrões! Ladrões!'. Brabâncio assustado com tamanha gritaria, aparece na janela de casa, sonolento. Iago destila seu veneno gota a gota, faz perguntas sem sentido, lançando mão do poder da dúvida. Nesse instante, Brabâncio é convencido por Iago de que foi roubado, não o seu tesouro de ordem material, mas aquele que têm como mais precioso — e que não se pode mensurar: A alma. 'Uma punhalada no coração, morre o corpo e fica a alma. Uma punhalada na alma, morre o corpo e morre a alma. Se todos morrem, quem vive então?'. Iago em um golpe de misericórdia, realiza o último desejo de Brabâncio, contando-lhe que o bode preto do Mouro acabara de cobrir a branca ovelhinha de Desdêmona. Brabâncio enlouquece. Sua filha casada com Otelo? O absurdo acabara de bater à sua porta. Irado, Brabâncio cai na cilada. Rodrigo, outro tonto, oferece-se para levá-lo ao encontro dos recém-casados — surpreendendo-os em sua alcova. Junto com uma boa escolta – os três partem em busca de Otelo e Desdêmona.
Na segunda cena entram Otelo, Iago e auxiliares com tochas. Estão parados numa outra rua de Veneza. Iago conta a Otelo sobre a sua destreza em defendê-lo junto a indignação de Brabâncio, ao saber que Desdêmona havia se casado na calada da noite — ressaltando seu poder de persuasão e auto-controle, diante de um pai atormentado com a ideia, de ver sua filha e o Mouro unidos por toda a eternidade, pelos laços sagrados e indissolúveis do matrimônio. Com as costelas expostas e a alma sangrando, Otelo escuta silenciosamente. Iago, pingando mais uma gota do seu veneno no espírito de Otelo, disse-lhe que o mais sensato seria se precaver contra o poder de Brabâncio, rico senador de Veneza e homem influente na Côrte, capaz de matar Otelo e conseguir a separação de sua filha num passe de mágica — e ainda fazer valer a lei, aniquilando com o espírito do Mouro, varrendo-o para fora do planeta Terra. Otelo mantinha-se aparentemente calmo, embora as palavras de Iago doessem mais do que todas as cicatrizes que conquistara no exercício do serviço militar.
Otelo de fato amava Desdêmona. Não um amor sólido como àquele que nos arrasta invariavelmente, não ao calabouço das paixões, mas a eternidade de um amor tranquilo. Só os sentimentos imutáveis duram para sempre. Os mutáveis, àqueles que precisam de décadas para se solidificarem, ficam liquefeitos a nossa frente — e se não sabemos nadar — afoga-mo-nos no oceano de nós mesmos. Assim era o amor de Otelo por Desdêmona: Frágil como uma prancha de isopor. E o que ele achava que sentia, não era verdade. Amor não tem nada haver com paixão. Posse não tem nada haver com libertação. E uma ave rara como Desdêmona, precisa de asas para voar. Ela sim havia descoberto o verdadeiro sentido do amor. Ela sim estava inteira na relação. Sabia que amava-o tanto ou mais do que a si mesma. Amor que junta, que solidifica sentimentos, que amadurece. Sabia que tudo que é sólido pode derreter. Até o metal mais duro, amolece. Sabia que o amor não têm nada de concreto. O amor é abstrato. Sendo assim, juntou todos os sentimentos que possuía, e guardo-os numa caixa. Paixão é amor bandido. Paixão é sentimento passageiro. Paixão nasce. Paixão cresce. Paixão morre. Paixão mata. E Desdêmona também sabia disso. Sendo assim, conformou-se com sua dura realidade — a de amar sem ser amada. Quantos de nós já passou por isso? Quantos de nós já acordou no meio da madrugado e descobriu que estava outra vez sozinho? Hein, quantos? Certamente, muitos. Certamente, todos. Se há coisa nesse mundo que é comum a todos nós — é abandono e solidão. Uns vivem, outros sobrevivem; enquanto todos morrem. Calado o Freud que se abateu sobre mim, tomei mais um gole do destilado, e voltei ao palco. Voltei à cena. Continuemos…
Ainda estamos na CENA II — aquela que Iago conversa com o general sobre a repercussão de seu casamento, nas alcovas da cidade. Parados à porta da residência de Otelo, observam a chegada de Cássio e alguns oficiais com tochas. Eram os criados do Doge e o tenente, braço direito de Otelo, que vinham avisá-lo que se apresentasse imediatamente ao Senado, pois rumores diziam que havia algo de muito urgente acontecendo em Chipre. Nesse momento chega Brabâncio e seus amigos, que vinham no intuito de capturar Desdêmona, e demovê-la da ideia de continuar casado com Otelo. Iago colocando mais uma gota de veneno no lamaçal das desgraças humanas, de forma ardilosa diz ao general que tome cuidado, pois Brabâncio não vem com boas intenções. Brabâncio entra na casa sem pedir licença – acompanhado de Rodrigo e de oficiais munidos de tochas e armas. Rodrigo aponta onde está o Mouro, incitando ainda mais o ódio de Brabâncio. Ao desembainharem-se as armas, Otelo enfrenta a fúria do sogro. O Mouro é chamado de ladrão várias vezes e Brabâncio continua vociferando palavras de baixo escalão, chamando Otelo de amaldiçoado, de feiticeiro, de engabelador de mocinhas indefesas. Brabâncio exalta as qualidades de Desdêmona em detrimento do caráter sórdido do Mouro. Depois de chamá-lo de toda a sorte de xingamentos e fazê-lo engolir inúmeros impropérios, Brabâncio avisa-o que havia prestado queixa de sua conduta nos tribunais — e declara-o preso. Otelo argumenta que não pode ser preso, já que o Doge de Veneza reclama a sua presença o quanto antes, devendo ir vê-lo imediatamente. Brabâncio não se conforma com a ideia do Mouro ficar em liberdade, mesmo que seja para resolver problemas de Estado, e reunido a seus homens, parte com o Mouro preso — rumo ao encontro do Doge.
(Os atores saem do palco)
CENA III — Chegando à Câmara do conselho, Brabâncio e seus amigos encontram o Doge e os senadores à volta de uma mesa. Oficiais de prontidão. Entram no palco os atores que fazem o papel de Brabâncio, Otelo, Iago, Rodrigo e oficiais. O Doge agradece a presença de Otelo e faz uma breve saudação a Brabâncio, que de num único sopro, chora todas as suas mágoas. Brabâncio diz ao Doge que Desdêmona morrera naquela mesma noite, não fisicamente, mas ao ter sua alma sequestrada por um monstro, a jovem havia partido para o mundo do esquecimento. Enfeitiçada pelo espírito imundo do monstro, segundo as palavras de Brabâncio, Desdêmona havia passado a se comportador como louca, ao se unir em matrimônio com um ser tão bestial. Era inadmissível que uma donzela de excelente família, educada na Côrte, bonita e extremamente inteligente, se apaixonasse por alguém tão desprezível! Revoltado com a história cruel contada por aquele pai, o Doge sentencia o monstro à morte — dando plenos poderes a Brabâncio para fazer justiça com as próprias mãos. Brabâncio agradece e apresenta Otelo como o causador de toda aquela desgraça familiar. Reconhecendo que estava de frente para um problema ainda maior, o Doge acha por bem desconversar e deixar as pendengas pessoais em segundo plano, e vai direito aos assuntos de Estado. Assim sendo, informa a Otelo que os turcos com uma poderosíssima frota inimiga, dirigem-se para Chipre. Otelo, que têm uma incomparável habilidade para causas militares, deveria unir-se às tropas e partir imediatamente. Otelo agarra com unhas e dentes, aquilo que considera ser a missão de sua vida, e aceita o encargo de guerrear contra o exército Otomano. Humildemente, suplica ao Doge que providencie residência fixa e pensão à Desdêmona, para que, sabendo que ela está em segurança, possa partir traquilo. O Doge sugere que Desdêmona fique na casa de seu pai, enquanto aguarda o retorno de Otelo. Otelo não permite, alegando que isso não seria bom para nenhum dos três. Brabâncio concorda. Em meio a esse impasse, o Doge pergunta à Desdêmona, o que ela pensa disso tudo. Desdêmona responde que ao contrário do que Brabâncio, Otelo é um homem honrado, forte e corajoso. Por isso colocara a própria alma em suas mãos. Sendo assim, não haveria porque ficar na paz e no conforto da casa do pai, já que o marido iria para o desconforto da guerra. Apaixonara-se pela alma aventureira daquele homem, e não pela calmaria de dias mortos. Portanto deveria partir para Chipre com seu marido, porque caso em contrário, não haveria o porquê de estar casada. O Doge ouviu-lhe pacientemente e movido por sua prudência habitual, sugeriu que qualquer decisão que fosse tomada a esse respeito – fosse pelo caminho do diálogo, da sensatez, da sabedoria, e do abençoado coração de todos. E se tratando de um assunto familiar tão íntimo, que fosse tratado como tal, em conversa privada. Falou-lhes e calou-se. Mas não sem antes lembrá-los que havia outro assunto muito mais urgente em pauta: A guerra. Portanto as tropas deveriam partir em pouquíssimas horas, logo ao amanhecer. Antes de sair, o Doge sugere a Otelo que ao partir deixe seu melhor oficial na cidade, para transmití-lo, assim que possível, às ordens do Senado. Desejando boa noite a todos, o Doge retira-se. Brabâncio encara Otelo no fundo da alma, e diz que fique de olho em Desdêmona. Afinal, uma filha que é capaz de mentir, trair e enganar o próprio pai, não é digna de confiança. Otelo fica perplexo com as insinuações de Brabâncio, mas responde-lhe que confia na fidelidade da mulher. Quando Brabâncio sai, Otelo pede a Iago que proteja a honra de Desdêmona até o último sopro de vida, nem que para isso tenha que matar ou morrer por ela. Para tal, Otelo recomenda que Iago coloque a própria esposa para servir Desdêmona, como sua dama de companhia. E assim que puder, parta com ela ao seu encontro, levando as ordens do Doge no coração de sua amada. Isto posto, recolhe-se com Desdêmona para aproveitarem no leito, cada segundo de uma hora de amor. Afinal, como diria o poeta: "O tempo não pára."
(Otelo e Desdêmona saem)
Rodrigo aproxima-se de Iago e confessa a sua paixão por Desdêmona. E diz que diante de tamanho tormento, sem o amor de sua amada, não valeria a pena viver. Portanto afogar-se-ia o quanto antes, no oceano da morte. Iago o convence do contrário, e diz que jamais se dobraria a paixão, entregando-se a quem quer que fosse, a ponto de tornar-se um ser tão patético quanto ele. 'Que farsa de homem é você, amigo? Você não serve nem para jogar fora, Rodrigo!' — exclama. E num grito, completa: 'Acorda, Rodrigo! Desdêmona não passa de uma bactéria! O amor é um microrganismo nocivo à saúde humana! Quando não nos mata — nos aleija! Entenda de uma vez por todas que Desdêmona não é um alimento probiótico! Ela não é a única mulher no mundo, a ter no intestino, lactobacilos vivos! Merda, Rodrigo! Acorda! No frigir dos ovos, tudo vira bosta! Para de idolatrar essa vadia! Todo mundo caga, todo mundo peida, todo mundo mija! O resto, meu amigo, é só etiqueta'. Rodrigo então pergunta a Iago o que deveria fazer. E Iago responde: 'Não me faça perguntas retóricas, meu caro. Mas como estou de bom humor — vou te ajudar. Todo ser humano é capaz de controlar os próprios sentimentos, Rodrigo. Basta querer. O suicídio é a coisa mais última que alguém pode fazer a si mesmo. Ninguém merece nascer com o peso da alma de um suicida. É muito Umbral para pouco sentimento'. E completa: 'Seja homem, Rodrigo! Afogam-se gatos e filhotes cegos de cachorro! Se és homem, então honra o recheio das suas próprias calças! Como seu amigo que sou, jamais permitirei ato tão infame! Só aos ratos é dado o direito de abandonar o navio ao menor sinal de deriva. Não te faças de leitão para mamar deitado! O inferno é só um dedo, Rodrigo. E o céu; uma nuvem. Tanto no céu quanto no inferno, todo mundo tem o direito de ter ao menos um dedo de prosa, com deus ou com o diabo. Menos os suicidas... Separe uma boa soma em dinheiro, coloque uma barba postiça para que ninguém te conheça, e parta para essa guerra. Leve o máximo de dinheiro que conseguir carregar, e conquiste o amor de Desdêmona. Otelo é um ser volúvel. Parece forte, mas no fundo é tão sensível e inseguro, que antes mesmo de pendurar um quadro, molha o prego, para não machucar a parede. Excesso de massa muscular não substitui a falta de massa cinzenta! Odeio a fraqueza de tais covardes! Gente assim parece ter trombose cerebral! Prefiro trocar minh'alma com a de um babuíno a viver ajoelhado! Por isso digo e repita: Encha a sua bolsa de dinheiro! Parta para a guerra com o Mouro e conquiste o amor de Desdêmona! Logo ela verá a verdadeira face do inimigo. Logo o Mouro perceberá com quem se casou. Um casal de idiotas não pode viver feliz para sempre. É algo como uma expiação que têm que ser paga. Nenhum espírito foge das suas dívidas. Portanto, meu caro, conspire contra o Mouro e assuma às rédias da sua própria existência. Não se deixe manipular por ninguém. Falo isso, porque sou seu amigo. Suicídio é para os covardes. Afogar-se a essa altura da vida, seria o mesmo que assumir em público a sua incompetência. Confia na minha amizade e faça o que eu digo, querido amigo. No final tudo dará certo!'.
Rodrigo convencido pela oratória impecável de Iago, promete vender as suas terras, levantar uma boa soma em dinheiro, e partir.
(Rodrigo sai de cena)
Iago, sozinho no palco, vangloria-se por conseguir manipular tão bem os sentimentos humanos. Achando-se na confortável posição de um homem mal, cercado por idiotas da estirpe de Rodrigo, pela primeira vez tem certeza que seu plano de vingar-se do Mouro, daria certo. Inveja e egoísmo são sentimentos letais. E quem sabe manipulá-los como um alquimista, consegue tirar leite de pedra. Iago de fato odiava Otelo. Suspeitava até que o general já havia estado com sua esposa, em sua cama, entre os seus lençóis. Iago era o tipo de corno carcará. Aquele que pega, mata e come. E como bem se sabe, pessoas assim são capazes de tudo. Portanto, embora não tivesse certeza da infidelidade de sua esposa nem da traição do amigo, não estava nem aí para pagar para ver. Prejudicá-lo-ia como se a história da traição fosse verdade. Assim teria forças para chegar ileso ao final do Quinto Ato. Assim, já que Otelo o tinha em mais alto grau de amizade, utilizaria a excessiva confiança do Mouro, e o apunharia pelas costas – fazendo-o beber do próprio veneno. A ideia era insinuar que Desdêmona e Cássio tinham um caso. “Afinal não existe amizade entre um homem e uma mulher, sem que haja sexo no meio” – disse-nos Sir Philip Sidney dias desses, ao interromper o ensaio, exclamando: “Foi mais ou menos isso que disse-me Sigmund Freud em Viena, após o nosso décimo quinto orgasmo, quando acabamos de ler juntos '"DieWelt als Wille und Vorstellung" — (O mundo como vontade e representação), de Arthur Schopenhauer: Tudo acaba em sexo!”. Dito isto, calou-se. Seguindo o espetáculo, Iago iria insuflar o ódio e a dúvida no coração e na alma apodrecida do Mouro. 'Tudo é muito relativo nessa vida' — balbuciou Iago. 'E de fato, ninguém ter certeza de nada. Aliás, a única certeza que se pode ter, é que quem no passado não foi corno, é, ou ainda será. Tudo é uma questão de tempo. Quanto ao resto – sobram-nos hipóteses. Nenhum homem resiste a um par de chifres!' – conclui. Para seduzir e arrastar para o fundo do poço alguém tão inseguro quanto Otelo, era só contar uma boa história. E Iago sabia disso... Dizia que o órgão sexual mais importante é o cérebro. Portanto, se usasse mais a cabeça de cima, que a de baixo, teria total controle da situação. Sendo assim, iria dizer ao Mouro que achava estranho o afeto que Miguel Cássio sentia por Desdêmona. 'Um homem e uma mulher, se não são casados, não há porquê andarem sempre juntos, feito dois pombinhos arrulhando-se um no ninho do outro'. Portanto Iago iria usar a palavra certa, na hora certa, minando e acabando com as forças do cretino. 'Já que tudo passa: a vida, a morte, o amor, e o destino da nossa própria sorte, então Otelo também passará' – pensou.
Iago sabia que Otelo, vaidoso que só, acreditava nas aparências. Para ele um homem era tudo aquilo que dizia ser. E ponto. Portanto, manipulá-lo seria mais fácil que tirar pirulito da boca de criança. 'Pior seria se fosse da boca de um rottweiler!' Assim sendo, foi para os seus aposentos e descansou. Agora era só uma questão de tempo. O tempo… Sempre o tempo. Otelo seria derrotado mais cedo ou mais tarde. 'A paciência não é privilégio apenas dos fortes. É também a grande virtude dos fracos'. Meu Deus!
Fim do PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
CENA I
O SEGUNDO ATO começa em um porto em Chipre.
(Entra um cavalheiro)
Os planos de guerra das tropas inimigas findam após uma tempestade que golpeou os turcos – que partiram em retirada. Houve muitos naufrágios, e grande parte da armada turca, foi aniquilada pela força avassaladora da natureza. Ouve-se um barulho de disparos de cortesia vindos de um barco amigo. Cássio especulando quem eram tais viajantes, foi notificado pelo cavalheiro que recepcionou-os no porto de Chipre, que era uma fragata amiga, e que nela estavam, Iago — alferes do general e fiel servidor da Côrte; homem de confiança de Otelo — trazendo a esposa do chefe em segurança. Apesar da tempestade que assolara grande parte da região, todos haviam feito uma ótima viagem. Graças a Deus, entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Montano conversa com o tenente Cássio, sobre a notícia do casamento de Otelo, e Cássio responde que sua esposa é uma mulher incrível, inteligente e bela. 'Certamente é uma benção na vida de qualquer homem, ter o privilégio de envolver-se com uma donzela tão afortunada, nos sagrados e indissolúveis laços do matrimônio'. Montano fica contente ao saber que Otelo conseguira casar-se com alguém tão especial. Enquanto os dois conversam, o cavalheiro que havia saído para recepcionar o barco que chegara, volta contando que todos viajaram em excelentes condições. E que de fato estavam todos bem. O cavalheiro atribui tamanha benção à presença de Desdêmona no barco, já que ela é detentora de todas as bençãos divinas. Montano pergunta ao cavalheiro quem é essa senhora, e antes mesmo do cavalheiro responder, Cássio explica que, Desdêmona, é o nome do anjo em forma de mulher, com o qual Otelo se casou.
(Entram Desdêmona, Emília, Iago, Rodrigo e serviçais)
Cássio cumprimenta os viajantes pedindo a Deus que abençoasse a estadia de Desdêmona naquele lugar. 'Louvado seja Deus pelo bem estar de todos!' Em seguida, Desdêmona é avisada que Otelo ainda não havia chegado e que todos aguardavam notícias dele. Desdêmona fica preocupada, mas Cássio a tranquiliza, dizendo que em breve Otelo aportaria em Chipre. Nesse momento ouve-se um grito: 'Barco à vista!' 'Barco à vista!'. Ouve-se disparos. Iago e Emília, sua esposa, aparecem e são recebidos por Cássio — que os cumprimenta com bastante entusiamo — beijando Emília à face. Iago, por não gostar de Miguel Cássio, dá pouca importância à recepção tão calorosa, achando a atenção dispensada a sua esposa, um tanto demasiada. Iago diz que Emília é uma tagarela. E que viajar com ela foi um verdadeiro tormento. Desdêmona discorda, e diz que Emília é a pessoa mais silenciosa e doce do mundo. Iago responde dizendo que as mulheres são ardilosas, manipuladoras, sínicas e conspiradoras — capazes de tudo para alcançar seus objetivos. Desdêmona se ofende com tal comentário, afirmando que Iago não sabe o que diz. Cássio muda o rumo da prosa, sussurrando-lhe ao ouvido, que não leve a sério tais ofensas, já que apesar de ser um ótimo soldado, Iago não passava de um homem simplório. 'Eram comentários de um iletrado voraz. Sendo assim, melhor olvidá-los'. Iago observa o casal, achando ótimo que todos percebam que os dois são amigos íntimos — a ponto de sussurrarem, um ao ouvido do outro, sem o menor pudor. Nesse instante, ouve-se o som de trombetas, e Iago diz a todos que é Otelo quem chega.
(Entram Otelo e serviçais)
Otelo fica feliz ao saber que Desdêmona está sã e salva. Os dois abraçam-se e beijam-se no porto de Chipre, tornando público o amor que sentem um pelo outro. Iago observa furioso, jurando acabar com essa paixão em três tempos. Otelo convida a todos a ficarem no Castelo e comemorarem com ele, o fim da guerra e o naufrágio dos turcos. Todos partem — menos Iago e Rodrigo.
Iago diz a Rodrigo que Desdêmona está apaixonada por Cássio: 'Até um cego é capaz de ver isso! Só o jumento do Mouro, que mais parece um Narciso à frente de um espelho d' água, que não vê. Esse Mouro não se enxerga!'. Dito isto, avisa-o que naquela noite, o tenente ficaria de vigília na sala da guarda. Rodrigo fica transtornado ao ouvir que Desdêmona ama Cássio. Iago diz que Desdêmona tem o coração de papel e é afeita à paixões passageiras. 'Traiu o pai, agora trai o Mouro… Essa mulher tem o dedo podre! Irá arruinar a vida de Cássio, como faz com tudo aquilo que toca!' Rodrigo discorda, dizendo que Desdêmona é a mulher mais sincera e abençoada do universo. Iago, usando um pouco mais do seu veneno, afirma que Desdêmona é sonsa, fria e amaldiçoada — capaz das piores atrocidades em nome de sua libertinagem sexual. Com essas palavras, induz Rodrigo a provocar Cássio, deixando no ar uma situação que desencadeasse um desentendimento no futuro. Satisfeito com seus planos de vingança — Iago se despede e sai.
Iago pensa no peso de suas palavras no coração de Rodrigo. Sabe manipulá-lo a ponto de convencê-lo a executar tudo que mandar. Rodrigo já havia caído em sua armadilha, e em muito pouco tempo, iria assumir sozinho, toda a culpa dos seus atos. Era como um contrato psicológico: Iago tramava. Rodrigo executava. E todos se perdiam, como patinhos na lagoa, após a passagem de um furacão. Iago conversando lá com seus botões, chega a conclusão que como Otelo, Rodrigo e Cássio, também era apaixonado por Desdêmona. Só que no meu caso — pensou: 'O amor é verdadeiro'. Só não revelara o seu amor à Desdêmona porque sua modéstia não o deixara. Iago diz que têm direitos adquiridos sobre ela. Afinal, se é verdade que o Mouro já dormiu com sua esposa várias vezes, muito natural fazer o mesmo com a esposa dele. Mergulha tanto em sua maldade, que chega a supor que se o general deitara com sua esposa — Cássio certamente o fizera também. Pensou até em dupla penetração! Então, aniquilando com ambos, mataria dois coelhos com uma cajadada só. 'Formidável!' — pensou. O plano então era manipular a vaidade de Rodrigo, dar-lhe esperanças sobre seu futuro ao lado de Desdêmona, usar Miguel Cássio como bode expiatório, arruinar à honra de Desdêmona, e enlouquecer Otelo, através da dúvida e do destempero que o ciúme provoca naqueles que têm o coração fraco. 'E voilà! Todos enredados na minha teia qual fantoches em minhas mãos — pensou. Bavo! Bravíssimo!'.
(Iago sai)
CENA II
(Entram Otelo, Desdêmona, Cássio e serviçais)
Otelo ordena a Miguel Cássio que seja o responsável pela ronda naquela noite. Cássio responde-lhe que conhecendo-o bem, já tinha pensado nisso, dando instruções a Iago e aos outros, sobre o que eles deveriam fazer. Disse a Otelo que ficasse tranquilo, pois iria supervisonar o trabalho de todos. Otelo fica feliz e diz que Iago é um homem sincero e honesto, e seria uma honra para qualquer espírito, tê-lo como amigo. Em seguida Otelo deseja boa noite a Miguel Cássio, pedindo-lhe que o procurasse na manhã seguinte para conversarem. Naquela noite, finalmente, Otelo e Desdêmona concretizariam a união de seus corpos, e gozariam, a tão esperada lua-de-mel.
(Otelo, Desdêmona e Serviçais saem)
(Entra Iago)
Cássio cumprimenta Iago e o convida para fazerem a ronda juntos. Iago desconversa, dizendo que ainda era muito cedo para isso. 'Podiam ficar um pouco mais ali, conversando. Até porque como era de língua corrente, a noite era de lua-de-mel. O casal haveria de ficar cumprindo os dez mandamentos do amor a noite toda – no sentido bíblico da palavra, é claro'. Cássio aproveita o comentário para tecer elogios à honra e a bondade de Desdêmona. Iago responde que acha Desdêmona uma mulher pecaminosa. Cássio discorda e diz que Desdêmona é a perfeição em pessoa. Iago finge se dar por vencido. E deseja felicidades à primeira noite de amor do casal — convidando Cássio para um brinde. Cássio agradece o convite, mas diz que é fraco para a bebida. 'Melhor não arriscar'. 'Com a ronda e todos os afazeres militares daquela noite, o melhor a fazer é permanecer sóbrio' — argumenta. Iago percebendo que a intolerância ao álcool era o ponto fraco de Cássio, diz que seria honroso brindarem com o povo local. Cássio recusa mais uma vez. Iago insiste dizendo que aquela era uma noite de grandes comemorações, um gole a mais, um gole a menos, não faria a menor diferença. Cássio constrangido, finalmente aceita o convite de Iago e chama os galantes cipriotas para beberem com eles. Iago sabe que se conseguisse deixar Cássio bêbado, o que não era difícil, seria uma ótima oportunidade de Rodrigo aproximar-se dele, e causar algum tipo de desentendimento entre ele e os locais — provocando uma briga colossal. Sendo assim, os planos de Iago iriam de vento em popa. Bingo!
(Chegam Montano e os Cavalheiros. Os serviçais entram carregando o vinho)
Todos brindam à saúde do general. Montano, governador de Chipre antes de Otelo, alegra-se com tamanho congraçamento. Cássio sente-se bem, apesar de ter bebido além do limite. Iago diz a Montano que Cássio está bêbado. Montano e os Cavalheiros discordam, e dizem que Cássio parece bem para fazer a ronda. Cássio diz que sente-se bem. E jura que não está bêbado. Montano ordena aos Cavalheiros que acompanhem Cássio ao terraço para montar as armas e fazer a guarda. Iago aproveita a saída do tenente para dizer a Montano, que Cássio fica bêbado todos as noites e sempre exagera no álcool. Montano surpreende-se e pergunta se isso vem acontecendo a muito tempo. Iago diz que sim. Então Montano preocupa-se com tamanha irresponsabilidade vinda de um tenente tão importante, braço direito e assistente direto do general. Rodrigo entra, e sem que Montano perceba, Iago ordena-lhe que vá atrás de Cássio. Rodrigo sai.
Montano fica indignado com o que acabara de ouvir de Iago, sobre o fato de Cássio ser alcoólatra, e decepcionado, lamenta ver que o Mouro tem como braço direito, alguém doente, que sofre dos males etílicos. Mediante tal enfermidade, decide que o melhor a fazer é avisar a Otelo sobre tal vício, e assim, não macular um cargo tão importante. Iago responde que não teria coragem de entregar o amigo Cássio ao general. 'Seria melhor tentar curá-lo'. Nesse momento ouve-se um grito que vem de dentro: 'Socorro! Socorro!'. Enquanto Iago e Montano tentam entender o que está havendo, Cássio aparece perseguindo Rodrigo (que não é reconhecido por Cássio, pois aparece disfarçado com a barba falsa). Cássio diz que o tal cavalheiro teve o desplante de querer ensiná-lo a fazer o seu trabalho, e ameaça dar-lhe uma surra por tal atrevimento. Rodrigo provoca e diz que Cássio não é homem para isso. Cássio cada vez mais nervoso, ordena que Rodrigo se cale imediatamente ou pagará caro por isso. Montano segura Cássio e pede ao tenente que se acalme. Cássio diz a Montano que se não o soltar, apanhará também. Montano pede a Cássio mais uma vez que se acalme. E argumenta que aquele fato deplorável só esta acontecendo, porque ele está bêbado. Cássio, ainda mais nervoso, revolta-se com tal infâmia. Os dois brigam. Iago ordena a Rodrigo que saia dali imediatamente, e avise a todos, aos gritos, que está havendo um motim. Rodrigo sai e em voz alta pede aos outros homens que tentem apartar a briga de Montano e Cássio. Nesse momento Otelo e os serviçais se aproximam. Otelo pergunta o que está havendo. Montano sangrando, diz ter sido covardemente ferido pelo tenente, e que Cássio deve morrer. Otelo ordena que eles parem de brigar imediatamente. Iago pede a Cássio e a Montano que tenham o bom senso de se comportarem de acordo com o decoro que seus cargos exigem, lembrando-lhes que não pega nada bem, a dois homens ilustres, ficarem se estapeando no meio da rua. Otelo pergunta a Iago, seu amigo mais honesto e fiel, quem ou o quê motivou tal briga. Iago responde que não sabe, que momentos antes de tudo começar, estavam todos conversando em perfeita harmonia. Portanto não sabe o que provocara o mal fadado acontecimento. Otelo pergunta a Miguel Cássio o que provocara esse acontecimento lamentável, vindo de um tenente tão respeitado. Cássio envergonhado, diz não ter palavras para explicar tamanho absurdo, e cabisbaixo, pede perdão a Otelo. E este dirigindo-se a Montano, pergunta-lhe qual o motivo de tamanha barbárie. Montano, sentindo muita dor, pede a Iago que conte o que houve a Otelo, retirando-se para cuidar do ferimento. Otelo indignado diz ser um absurdo ver homens de sua inteira confiança, brigando a noite, no local em que deveriam montar guarda e prover a segurança de todos. E pede a Iago que de uma vez por todas, diga quem começou a briga. Montano ordena a Iago que fale a verdade. Iago aproveita a deixa, e diz que mesmo sendo incapaz de falar mal de um amigo, era seu dever contar ao general que enquanto conversava na mais sagrada harmonia com Montano, Cássio embriagado, apareceu perseguindo um homem, espada em punho, pronto para feri-lo de morte. E que diante de tamanho horror, foi preciso que Montano intervisse, colocando-se a frente do tal homem, implorando a Cássio que não o matasse. Diante de tal horror, o homem conseguiu escapar, pedindo socorro. 'Sendo assim, fui obrigado a ir atrás dele, para que não acordasse toda a cidade – assustando a todos'. E prosseguindo, Iago diz a Otelo que quando voltou, Montano e Cássio já estavam brigando. Mas que Otelo deve levar em consideração a reputação ilibada de ambos. 'Portanto, se tal briga houve, deve ter sido causada por um forte motivo'. Otelo ao perceber tamanha demonstração de amizade por parte de Iago, mesmo assim acha melhor, diante do ocorrido, destituir Cássio do posto de lugar-tenente. Montano sai. Otelo pede a Iago que assuma as obrigações de Miguel Cássio. Todos retiram-se, menos Iago e Cássio. Iago pergunta a Cássio se ele está ferido. Cássio responde que está ferido sim, não no corpo, mas na alma. Iago pede que se acalme, prometendo ajudá-lo a recuperar a sua reputação junto ao general. Cássio diz que Otelo tem toda a razão de destituí-lo do cargo. 'Sabia que era fraco para a bebida e mesmo assim tomou o tal vinho. Era justo passar por tudo aquilo e seria indigno pedir ao general o posto de volta'. Iago responde que não é vergonha nenhuma um homem assumir que errou, afinal errar é humano. Sendo assim, aconselha a Cássio que vá até Desdêmona e peça ajuda para conseguir o posto de volta. Cássio concorda e diz que logo ao amanhecer irá ter com ela. Iago respira aliviado, pois finalmente, o seu plano está dando certo. Rapidamente envolvera a todos na sua teia de intrigas. Com a desculpa de que precisava fazer a ronda, despede-se de Miguel Cássio, que sai.
(Entra Rodrigo)
Rodrigo diz a Iago que está ficando sem dinheiro, e que por isso decidiu voltar à Veneza. Iago pede-lhe que tenha um pouco mais de paciência, que tudo dará certo, que descanse em seu alojamento e aguarde os acontecimentos. Iago odeia Rodrigo. 'Depender da inércia de um fraco é o mesmo que fazer um pacto com o diabo errado' — pensou. 'Não vou deixar que esse genérico de bufo me passe a perna' – desabafa.
(Rodrigo sai)
Iago percebendo que todos estão em suas mãos, resolve que sua esposa deverá interceder por Cássio junto à Desdêmona. Enquanto isso pensa em persuadir ao Mouro a surpreender Cássio e Desdêmona conversando. Porque Iago sabe muito bem que Otelo não resistirá ao poder do ciúme, do ódio, da paixão, da certeza, ou da dúvida. 'Bingo de novo!'.
(Iago sai)
FIM DO SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO
(A cidadela. Do lado de fora do alojamento de Otelo)
Cássio encontra-se com Iago e avisa-o que marcará um encontro com Emília, para combinarem uma aproximação com Desdêmona. Iago responde a Cássio que fará tudo para ajudá-lo, inclusive afastará Otelo dali, para que eles conversem sem interrupções. Cássio agradece. Iago sai. Cássio fica feliz por Iago ser o mais sincero, bondoso, amável e honesto dos florentinos.
(Emília entra)
Emília cumprimenta Cássio e diz que ficou entristecida com os últimos acontecimentos, tranquilizando-o e oferecendo toda a sua ajuda. Emília conta-lhe que Otelo e Desdêmona conversaram sobre aquele acontecimento lamentável, e que a Madame o defende com unhas e dentes. Por outro lado, o Mouro diz-se decepcionado com a sua conduta, até porque o homem por ele ferido, é um cavalheiro de renome em Chipre. Portanto, não seria certo colocar panos quentes, numa situação como essa. Entretanto, Emília diz que o Mouro tem uma enorme afeição por Cássio. Sendo assim, não tardará a chamá-lo para ocupar o seu antigo cargo.
Cássio fica emocionado ao saber que o Mouro de fato o tem em grande estima e pede a Emília que, se achar conveniente, gostaria de ir ter com Desdêmona, afim de lhe falar pessoalmente sobre o acontecido. Emília concorda em ajudá-lo, abrindo-lhe a porta do alojamento de Otelo, levando-o para uma sala em segurança, dizendo-lhe que em breve estaria na presença de Desdêmona.
(Cássio agradece-lhe e saem)
CENA II
(Diante da cidadela)
Desdêmona diz a Cássio que moverá céus e terras para ajudá-lo. Emocionada, Emília implora-lhe encarecidamente que o faça, e conta-lhe o quanto Iago têm sofrido com o afastamento do Mouro e de Cássio. Com os olhos rasos d' água, Desdêmona exalta as qualidades morais e as virtudes divinas do bom caráter de Cássio, dizendo que promoverá com todas as suas forças, a paz entre eles. Miguel Cássio agradece, prometendo-lhe fidelidade eterna. Desdêmona volta a repetir que em breve as desavenças não passarão de uma distância política. Cássio diz temer tal distanciamento, já que afastado do seu posto e longe dos olhos do Mouro, possa ser esquecido definitivamente. Desdêmona diz que irá ter com Otelo e o convencerá a voltar atrás em sua decisão – readmitindo Cássio e devolvendo-lhe seu antigo posto. Advogada dos fracos e oprimidos, Desdêmona preza pela justiça e harmonia entre os homens. Portanto promete a Cássio que lutará por ele até a morte.
(Entra Otelo e Iago, longe dos outros)
Emília avisa à Desdêmona que Otelo se aproxima. Cássio despede-se e sai. Desdêmona pede a Miguel Cássio que fique e converse com Otelo. Cássio diz que ainda não é o momento certo dos dois conversarem francamente, preferindo ausenta-se à pelear com Otelo. Desdêmona concorda e o aconselha a fazer o que achar melhor.
(Cássio retira-se)
Iago vê na saída de Miguel Cássio a chance perfeita de destilar mais uma vez o seu veneno na alma de Otelo. Sendo assim, dá a entender que acha suspeitíssimo Cássio se retirar sem falar com ele. Otelo diz não compreender tal atitude de Cássio, e pergunta a Iago se aquele cavalheiro que acabara de sair, era mesmo Miguel Cássio. Iago diz não saber dizer, achando sinceramente que não. 'Afinal um amigo tão fiel e honesto como Cássio, jamais sairia esgueirando-se como um criminoso', sabendo que Otelo estava a dois passos da presença dele. Otelo diz não ter visto direito o rosto do tal cavalheiro, mas que acredita que era ele sim. Ao aproximarem-se da Madame e sua criada, Otelo desconfiado, fica em silêncio. Iago observa. Desdêmona cumprimenta o esposo e diz que o homem que acabara de sair era um suplicante que sofre com o desprezo de seu marido. Otelo pergunta quem era aquele homem. Desdêmona conta-lhe que era o tenente Cássio que conversava com ela até aquele instante, e que o coitado saira envergonhado, receioso da reação do Mouro. Desdêmona diz a Otelo que Cássio errou por ignorância, já que como homem bom que é, não tem maldade em seu coração. Sendo assim, pede a Otelo que o perdoe. Otelo ainda confuso, pergunta se aquele homem era mesmo Miguel Cássio. Desdêmona diz que sim. E pede a Otelo que o readmita em seu cargo. Otelo encerra o assunto, dizendo que aquele não era nem o lugar, nem o momento certo, de tocar em tal questão. Desdêmona então pergunta quando será o momento certo. Otelo responde que tão logo quanto possível. Afinal era impossível negar um pedido seu — diz. Desdêmona pede a Otelo que o tempo para essa conversa acontecer, não passe de três dias. Afinal Cássio está sofrendo muito com o afastamento de seu melhor amigo. Desdêmona recorda a Otelo que foi Miguel Cássio que os aproximou, e que se não fosse por ele, talvez não estivessem casados. Otelo ordena a Desdêmona que se cale. 'Cássio não é nenhuma criança indefesa' — diz. 'Deixa que ele venha quando quiser. Meu amor por ti é tão grande que me impede de dizer-te não. Mas deixe-me a sós com meus pensamentos. Saia, por favor'.
Desdêmona resignada, retira-se. Otelo diz que irá ao seu encontro logo em seguida.
(Saem)
Otelo proclama aos céus o seu amor por Desdêmona, e diz que quando não mais amá-la, o caos se estabelecerá no universo.
Iago percebendo a confusão mental de Otelo, pergunta-lhe se quando este cortejava Desdêmona, Cássio sabia de seu amor por ela. Otelo diz que sim, dizendo não entender o porquê de tal argumentação. Iago diz que não perguntara por mal, e sim por curiosidade. Otelo insiste e diz querer saber o porquê de tamanha curiosidade. Iago diz que pensava que Cássio não conhecia Desdêmona antes de Otelo e ela se casarem. Otelo afirma que foi Cássio quem os aproximou, dando todo o apoio para que ficassem juntos. Iago diz estar surpreso. Otelo mais confuso ainda, não entende a reação de Iago, e pergunta-lhe se ele desconfia da honestidade de Miguel Cássio. Iago dá a entender que Cássio não parece ser tão honesto assim. Otelo reafirma que Cássio é a pessoa mais amiga, fiel e honesta desse mundo. Iago insinua duvidar. Otelo diz não entender aonde Iago quer chegar com aquela conversa, insinuando coisas e não dizendo realmente o que pensa. Iago diz a Otelo que movido pela imensa amizade que sente por ele, desconfia das intenções de Cássio. Otelo diz confiar na amizade de Iago. E sabedor da sua imensa honestidade, não compreende o porquê de tamanha desconfiança. Iago diz que sabe que Cássio é um bom homem, mas que “às aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”. Afinal, 'nunca se sabe o que vai no coração do homem'. Otelo fica mais confuso ainda e pede a Iago que se sabe de alguma coisa que vá em detrimento ao caráter de Cássio, que fale. Iago diz não saber de nada, embora ache muito estranho Cássio ter saído daquele jeito, sem sequer cumprimentá-lo. Otelo permanece calado. Iago aconselha Otelo a deixar qualquer desconfiança de lado. Diz ter se expressado mal, e que o amor deve ficar acima de qualquer ciúme. Otelo diz que seria incapaz de sobreviver à infidelidade, e que caso isso acontecesse, não responderia por seus atos. Por isso precisava ver para crer. 'Já que Desdêmona o escolhera, seria um absurdo vitimá-lo com sua traição. Não haveria nada mais certo que a morte, para acabar de uma só vez, com o amor e com o ciúme' – sentencia. Iago diz que ouvir tal coisa do Mouro o deixava aliviado. Agora sentia-se a vontade para falar o que sabe da amizade de Desdêmona com Cássio. Iago pede ao Mouro que observe os dois quando estiverem juntos, que preste atenção na troca de olhares, nas carícias, nas interrogações pairando no ar, nos suspiros e na cumplicidade, dignos dos amantes mais apaixonados. Otelo fica estupefato! Iago diz que antes de ser uma santa, Desdêmona é uma mulher. 'E o que querem as mulheres?' – pergunta. E repete: 'Antes de ser santa, Desdêmona é uma mulher'. 'Mulher esta, que enganara o próprio pai para fugir e casar-se contigo'. 'Se tão jovem ela foi capaz de articular um plano desses, imagina o que fará agora, casada e com mais experiência de vida. Definitivamente, ingenuidade, não é uma qualidade feminina' — argumenta. Iago do alto de sua vilania, insinua abrir os olhos do Mouro, para a cobra peçonhenta que Otelo colocara em própria cama — alimentando com mel, aquela que não pensaria duas vezes antes de picá-lo. 'Uma mulher que trai a confiança do próprio pai, não respeita ninguém'. 'Então seria bom Otelo manter os olhos e os ouvidos bem abertos'. Iago completa dizendo que só tocara no assunto por amizade ao Mouro, mas roga a Deus todos os dias, que isso não passe de mera especulação. Iago diz que também sente grande admiração por Cássio, que o fato de serem amigos é um presente dos céus. Longe dele colocar caraminholas na cabeça do Mouro. Ou melhor dizendo; chifres!
Otelo proclama aos céus o seu amor por Desdêmona, e diz que quando não mais amá-la, o caos se estabelecerá no universo.
Iago percebendo a confusão mental de Otelo, pergunta-lhe se quando este cortejava Desdêmona, Cássio sabia de seu amor por ela. Otelo diz que sim, dizendo não entender o porquê de tal argumentação. Iago diz que não perguntara por mal, e sim por curiosidade. Otelo insiste e diz querer saber o porquê de tamanha curiosidade. Iago diz que pensava que Cássio não conhecia Desdêmona antes de Otelo e ela se casarem. Otelo afirma que foi Cássio quem os aproximou, dando todo o apoio para que ficassem juntos. Iago diz estar surpreso. Otelo mais confuso ainda, não entende a reação de Iago, e pergunta-lhe se ele desconfia da honestidade de Miguel Cássio. Iago dá a entender que Cássio não parece ser tão honesto assim. Otelo reafirma que Cássio é a pessoa mais amiga, fiel e honesta desse mundo. Iago insinua duvidar. Otelo diz não entender aonde Iago quer chegar com aquela conversa, insinuando coisas e não dizendo realmente o que pensa. Iago diz a Otelo que movido pela imensa amizade que sente por ele, desconfia das intenções de Cássio. Otelo diz confiar na amizade de Iago. E sabedor da sua imensa honestidade, não compreende o porquê de tamanha desconfiança. Iago diz que sabe que Cássio é um bom homem, mas que “às aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”. Afinal, 'nunca se sabe o que vai no coração do homem'. Otelo fica mais confuso ainda e pede a Iago que se sabe de alguma coisa que vá em detrimento ao caráter de Cássio, que fale. Iago diz não saber de nada, embora ache muito estranho Cássio ter saído daquele jeito, sem sequer cumprimentá-lo. Otelo permanece calado. Iago aconselha Otelo a deixar qualquer desconfiança de lado. Diz ter se expressado mal, e que o amor deve ficar acima de qualquer ciúme. Otelo diz que seria incapaz de sobreviver à infidelidade, e que caso isso acontecesse, não responderia por seus atos. Por isso precisava ver para crer. 'Já que Desdêmona o escolhera, seria um absurdo vitimá-lo com sua traição. Não haveria nada mais certo que a morte, para acabar de uma só vez, com o amor e com o ciúme' – sentencia. Iago diz que ouvir tal coisa do Mouro o deixava aliviado. Agora sentia-se a vontade para falar o que sabe da amizade de Desdêmona com Cássio. Iago pede ao Mouro que observe os dois quando estiverem juntos, que preste atenção na troca de olhares, nas carícias, nas interrogações pairando no ar, nos suspiros e na cumplicidade, dignos dos amantes mais apaixonados. Otelo fica estupefato! Iago diz que antes de ser uma santa, Desdêmona é uma mulher. 'E o que querem as mulheres?' – pergunta. E repete: 'Antes de ser santa, Desdêmona é uma mulher'. 'Mulher esta, que enganara o próprio pai para fugir e casar-se contigo'. 'Se tão jovem ela foi capaz de articular um plano desses, imagina o que fará agora, casada e com mais experiência de vida. Definitivamente, ingenuidade, não é uma qualidade feminina' — argumenta. Iago do alto de sua vilania, insinua abrir os olhos do Mouro, para a cobra peçonhenta que Otelo colocara em própria cama — alimentando com mel, aquela que não pensaria duas vezes antes de picá-lo. 'Uma mulher que trai a confiança do próprio pai, não respeita ninguém'. 'Então seria bom Otelo manter os olhos e os ouvidos bem abertos'. Iago completa dizendo que só tocara no assunto por amizade ao Mouro, mas roga a Deus todos os dias, que isso não passe de mera especulação. Iago diz que também sente grande admiração por Cássio, que o fato de serem amigos é um presente dos céus. Longe dele colocar caraminholas na cabeça do Mouro. Ou melhor dizendo; chifres!
Otelo afirma que irá tirar a limpo essa história. E que descobrirá toda a verdade. Embora acredite piamente na honestidade de Desdêmona, não admitirá ser feito de idiota nem por ela nem por ninguém. 'Vida longa à Desdêmona!' – exclama Iago. 'Vida longa a ideia e ao pensamento, meu senhor!'.
Otelo diz que traição é anti-natural. 'Deus não criou o homem a sua imagem e semelhança para isso'. Corroído pelo ciúme, silencia-se.
Iago aproveita a deixa e diz que natural mesmo seria Otelo ter se casado com uma mulher da sua própria raça, com a mesma cor da pele, partícipe dos mesmos hábitos e costumes. Iago diz não acreditar no amor entre pessoas tão diferentes. 'Um casamento entre comuns sim, seria uma união digna das bençãos de Deus' . 'Desde que o mundo é mundo, as coisas são assim. O simples fato de imaginar o contrário, já seria um despautério e uma afronta às leis da natureza'. 'Otelo teu nome é pecado! ' — pensa. Chegando ao ápice do cinismo, Iago diz a Otelo que teme que findando o tempo das novidades, as diferenças entre ele e Desdêmona fiquem mais aparentes, distanciando-os ainda mais. Se isso acontecer, meu senhor, Desdêmona perceberá o quão diferentes vocês são. E certamente se arrependerá de ter cometido um ato tão ignóbil, o de ter um pecado mortal, ao casar-se convosco.
Otelo é visitado por uma enorme tristeza. Mais só do que nunca, desterrado e expatriado em si mesmo, pede a Iago que o deixe em paz. E que ao sair, vá ter com Emília, e peça-lhe para observar o que realmente existe entre Cássio e Desdêmona. 'Caso descubram alguma coisa, não tardem em contar-me'.
(Iago despede-se e sai)
Otelo percebe que Iago sabe muito mais do que dissera. E só não revelara toda a verdade, porque do alto da sua amizade divina, não ousaria macular a imagem de Miguel Cássio e Desdêmona, diante dos seus olhos. 'Isso é que é amizade' – pensou.
Iago retorna e pede a Otelo que esqueça tudo o que foi dito ali. Afirma que caso haja um romance entre Cássio e Desdêmona, o melhor a fazer é devolver o posto ao amante dela, e manter o inimigo por perto. 'Assim será mais fácil esmagá-lo quando chegar a hora certa'. 'Vingança é um prato que se come frio, senhor'. 'É sempre bom ter o inimigo ao alcance das mãos'. Iago argumenta que livres para ir e vir, os amantes cedo ou tarde se trairiam. 'Uma mentira por melhor que seja contada, não dura mais que uma eternidade, senhor'. 'Portanto, se os dois tiverem um caso, o senhor logo perceberá' — finaliza.
Nota do autor: (Esconjuro, pé-de-pato, mangalô três vezes!!!)
Era o que faltava para que Otelo tivesse certeza que Iago era seu melhor amigo. Percebe que uma amizade tão sincera, só poderia ser movida por um coração de igual tamanho. Não tinha dúvida que Iago era um anjo em sua vida. Não haveria porquê duvidar de um amor fraternal. 'Portanto, Desdêmona deve morrer' — pensou. 'Falando na adúltera, eis quem chega'.
Otelo pensativo, diz a si mesmo que se Desdêmona é falsa, o paraíso zomba de si mesmo. 'A crueldade da vida é algo inacreditável!' – conclui.
Desdêmona aproxima-se e diz a Otelo que o jantar e os generosos cidadãos da ilha, por ele convidados, aguardavam a sua presença. Otelo diz arrepender-se de tê-los feito tal convite. Desdêmona pergunta a Otelo se ele sente-se bem. Otelo diz que não, que dói-lhe a cabeça bem na testa. Desdêmona diz que pressionará a sua fronte com um lenço, e que em menos de uma hora a dor terá ido embora. Otelo rejeita tal procedimento, alegando que o lenço é muito pequeno. Ele afasta de si o lenço, e Desdêmona, sem perceber, deixa-o cair. Os dois seguem para a sala de jantar. Desdêmona diz que sente muito por Otelo não estar sentindo-se bem.
(Saem)
Emília encontra o lenço da patroa caído no chão, e recorda-se que aquele pequeno pedaço de linho, havia sido o primeiro presente que Otelo havia lhe dado. Lenço este que havia pertencido a mãe do Mouro, o que tornava-o ainda mais importante. Que ironia do destino… Iago havia insistido tanto para que Emília roubasse esse lenço de Desdêmona e o entregasse a ele. E agora por descuido da natureza, Emília tinha o objeto em suas mãos. 'Naturalmente o melhor a fazer seria dá-lo a Iago. Assim ele sossegaria' — pensou.
(Entra Iago)
Iago pergunta a Emília o que ela faz ali sozinha. Emília responde que, sem querer, encontrara caído a seus pés, o tesouro que ele tanto queria. Iago diz não entender o motivo de tanta euforia. E ela presenteia-lhe com o lenço que o Mouro dera à Madame. Iago pergunta se Emília roubou o lenço. Emília explica que não. 'Foi pura sorte estar no lugar certo, na hora certa' — diz. Iago agradece o presente. Emília pergunta a Iago o que fará com o lenço. Iago arrancando o lenço de suas mãos, responde: 'Não é da sua conta, mundana imprestável'. Emília pede a Iago que não use o lenço se for como instrumento para mais uma de suas maldades. E lembra-lhe que Desdêmona enlouquecerá quando perceber que o lenço sumiu. Iago manda Emília embora, ordenando-lhe que esqueça esse assunto.
(Emilia sai )
Iago decide esconder o lenço no alojamento de Cássio para incriminá-lo. 'Uma mentira a mais, uma mentira a menos, não faria mal a ninguém' – pensou. 'Afinal de contas, a mentira é só uma verdade que não teve tempo de acontecer'. 'Se a história do sumiço do lenço chegasse aos ouvidos de Otelo, e ele descobrisse que o lenço estava entre os pertences de Cássio — seria fácil envenená-lo de vez'. Ainda mais sendo o Mouro tão supersticioso, desconfiado, vaidoso e prepotente, a ponto de acreditar em todo tipo de bobagem. 'O Mouro acaba de assinar a sua sentença de morte!' — bradou. 'Morte ao Mouro!'. 'Morte! '.
Iago sabia que nem o sonífero mais forte, nem o calmante mais denso, seria capaz de apasiguar coração de Otelo. De hoje em diante, Iago transformaria a vida do Mouro num inferno. E pelo sim, pelo não, iria esmagar o Mouro como se esmaga uma barata. Iago sabia o que queria. E com uma presa tão passional nas mãos, fica fácil manipulá-lo como a um fantoche. E assim, Iago o faz.
(Entra Otelo)
Otelo chega resmungando e vociferando impropérios sobre o caráter de sua esposa. Iago implora-lhe que se acalme. Otelo diz que será impossível acalmar-se, porque agora sentia no beijo de Desdêmona, o gosto do beijo de outro homem. Iago diz estar desolado com tal confissão. Otelo confessa-lhe que se não tivesse descoberto que Desdêmona era uma prostituta tão ordinária, aí sim, poderia dormir tranquilo o resto dos seus dias. 'Dormiria feito um anjinho de procissão, Iago, mesmo que essa quenga houvesse fornicado com todos os homens do mundo! O que os olhos não vêem e os ouvidos não ouvem, a parabólica não capta, meu caro' — exclama Otelo descontrolado, emendando uma gargalhada na outra. 'Mas agora que sei que Desdêmona não vale uma gota de mel coado, a vida perdera totalmente o sentido'. 'Só se é feliz ao lado de quem se ama, Iago. O resto, a gente apenas suporta' – desabafa, chegando quase às lágrimas. Iago pergunta a Otelo se isso é mesmo possível... 'A vida perder o sentido por causa de uma traição'. 'Por causa de uma mulher'. 'Afinal, para que servem as mulheres?' — pergunta-lhe. Otelo responde que não sabe para que servem as mulheres, mas que é a prova viva do estrago que uma mulher, pode fazer na vida de um homem. 'Você está de frente para um homem morto'. Dito isto, Otelo ordena a Iago que o ajude a provar que Desdêmona é a mais desgraçada das mulheres. E agarra-o pelo pescoço. Iago fingindo estar surpreso, dá a entender que Otelo finalmente começara a enxergar a verdade.
Otelo diz a Iago que se tudo que ele fala a respeito de sua esposa for mentira, que será o primeiro a provar da sua ira. Iago fingindo ofender-se, jura estar arrependido de ter aberto os olhos do seu senhor, envergonhando-se por sentir por ele tanto amor, a ponto de deixar que sua sinceridade e honestidade, fizessem mal a um amigo tão estimado. Fingindo estar emocionado, confessa que só revelou toda a sordidez daquela traição, porque não seria digno deixar um amigo na ignorância. 'Minhas palavras são o mal necessário, senhor'. 'Mesmo assim, arrependo-me imensamente de tal ignomínia. Afinal, querendo fazer o bem, acabei fazendo mal ao meu melhor amigo'. Iago jura que jamais voltará a tocar naquele assunto, que renunciará a verdade, porque aprendera da pior maneira possível, como é dilacerante ser bom e honesto. Consternado, ajoelha-se aos pés de Otelo, implorando-lhe perdão por tamanho sacrilégio.
Otelo ordena a Iago que se acalme. E pede-lhe que não vá embora. Afinal compreende que tudo que fez foi por lealdade a uma sincera amizade. Otelo confessa que está confuso. E diz não ter certeza de mais nada. Horas acredita em Iago. Horas, não. Horas acredita na fidelidade de sua esposa, horas não. Portanto confessa a Iago que só descansará, quando tiver certeza da verdade. Só assim poderá satisfazer a sua curiosidade.
Iago desculpa-se novamente, dizendo que sente-se muito mal por tê-lo revelado tal situação. E pergunta-lhe se quer mesmo satisfazer sua curiosidade e desmascarar Cássio e Desdêmona. Otelo diz que não só quer, mas que precisa. É uma necessidade maior que ele. 'Viver na ignorância é pior que ir para o céu e não ver Deus!' – exclama. Iago diz que se Otelo quer descobrir toda a verdade, descobrirá. Mas pergunta-lhe a que preço. 'Essa curiosidade é faca de dois gumes, senhor'. 'Se o senhor não fizer nada para impedir, acabará jogando Desdêmona na cama de Cássio. Mas se o fizer, será corno do mesmo jeito!' — sentencia. Otelo fica desesperado! Então Iago o convence que caso o flagrante não seja possível, será fácil chegar a verdade através das evidências.
Otelo ordena-lhe que prove de uma vez por todas que Desdêmona é infiel. Iago conta-lhe que tem dividido o alojamento com Cássio, e que dia desses, tomado por uma forte dor de dente, não conseguia dormir. Foi então que, sonhando, Cássio disse: “Doce Desdêmona, vamos nos acautelar, vamos esconder o nosso amor”. 'Após dizer isso, Cássio pegou a minha mão, apertou-a, disse-me galanteios como se eu fosse Desdêmona, e pousando sua perna sobre a minha coxa, beijou-me apaixonadamente, a ponto de me deixar sem fôlego. Feito isto, esbravejou: “Amaldiçoado destino, que te entregou ao Mouro! ”. “Morte ao Mouro! ”. “Mil vezes, morte!”.
Ao ouvir tamanha infâmia, Otelo só tem forças para dizer: 'Que monstruosidade! Que monstruosidade!'.
Iago indo mais fundo em seu sarcasmo, aconselha-o que se acalme, dizendo-lhe que foi só um sonho inocente de Cássio. 'E embora os sonhos sejam sempre a revelação de verdades ocultas, em alguns casos, não devem ser levados tão a sério assim'.
Otelo fica horrorizado e diz que isso não lhe parece apenas um sonho, mas a confissão de uma imundície ainda maior. Iago concorda. E lembra-lhe que onde há fumaça; há fogo. Otelo irascível, diz que se tudo isso for verdade, cortará Desdêmona em pedacinhos. Iago intervém, e diz que Otelo tem que ser mais esperto que o casal de adúlteros. Até porque, em última instância, ainda resta a hipótese de Desdêmona ser honesta. Portanto, se quer mesmo cortá-la em pedaços, será preciso conseguir provas. 'Aí sim, não haverá nenhum mal nisso. Muito pelo contrário…' Sendo assim, Iago pergunta se Otelo sabe onde está o lenço que Desdêmona usa sempre — com bordado de moranguinhos. Otelo responde que não sabe. E conta-lhe que a presenteou com esse lenço logo que se conheceram. 'Esse foi o primeiro mimo que dei a minha amada!' — exclama. Iago diz que sendo um presente tão importante, deveria ser guardado no coração de Desdêmona como um tesouro. Otelo concorda. 'Porém', completa Iago, 'esse mesmo lenço que o senhor deu a essa meretriz como prova do vosso amor, foi visto por mim hoje cedo, nas mãos de Miguel Cássio, que o usava para enxugar a barba'.
Otelo enlouquece e diz: 'Se for o mesmo lenço, eu o matarei!'.
Iago aconselha-o a acautelar-se. 'Só assim poderás pensar friamente'. 'Como amigo devo adiverti-lo que, se o lenço que o senhor deu à vossa esposa como prova do vosso amor, for o mesmo lenço que Cássio usou para secar àquela barba imunda… E mesmo que não seja o mesmo lenço, mas qualquer outro que tenha sido dela, não haverá porque duvidar da veracidade dos fatos. Não dá para justificar o injustificável. Afinal, contra fatos — não há argumentos'.
Otelo perde a razão, e diz que agora tem certeza da traição da esposa. Fora de si, jura que irá se vingar, implorando aos céus que abençoem o seu ódio.
Iago divertindo-se, pede a Otelo mais uma vez que se acalme.
Otelo grita: 'Ah, sangue, sangue, sangue!'.
Iago escondendo uma densa gargalhada, pede a Otelo que seja paciente. Lembra-lhe que 'chifre é coisa que colocam na cabeça da gente'. Sendo assim, 'o mais sábio dos cornos é o corno manso'. 'Se o pior cego é aquele que não quer ver, o pior corno é aquele que não se enxerga'. E continua: 'No seu caso, o melhor a fazer é deixar as barbas de molho. Um provérbio espanhol diz que quando alguém vir as barbas de seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho. Entendeu ou quer que eu desenhe?!' — diverte-se Iago. 'Para quê dar murro em ponta de faca ou chifradas na parede? O máximo que o senhor irá conseguir é uma forte enxaqueca. O senhor está procurando chifre em cabeça de cavalo. E mesmo que o senhor seja um unicórnio ou um “uni-corno”, um completo idiota ou um burro-falante, mesmo assim, não valeria a pena chorar pelo leite derramado' — completou.
Otelo fica passado! Mesmo assim, confessa a Iago que jamais perdoará tal traição. 'Muito descaramento de Desdêmona enfeitar a minha testa!'. Com os olhos cheios de ódio, ajoelhado e com os braços levantados para o céu, jura ao bom e fiel amigo Iago, que primeiro matará Miguel Cássio, depois Desdêmona, e por último, matar-se-à.
Iago percebe que o Mouro está definitivamente enredado em sua trama de marionetes. E antes que Otelo se levantasse, Iago ajoelha-se junto a ele, jurando-lhe fidelidade eterna. Fidelidade esta — declara — que tornou-me capaz de fazer qualquer coisa por ti. 'Até matar'!
Otelo emocionado com tamanha prova de amizade, ordena que Iago mate Miguel Cássio, dando-lhe no máximo três dias para acabar com a vida do suposto traidor.
Iago promete que matará Cássio, mas implora-lhe que deixe Desdêmona viver.
Otelo diz que 'mulherzinha tão despudorada, indecente e lasciva, não merece viver'. Mas que Iago ficasse calmo, pois ele mesmo daria fim a vida dela. Dito isto, Otelo promove-lhe a tenente. Iago finalmente chegara onde queria.
(Saem)
CENA III
(Diante da cidadela)
Desdêmona pergunta a Emília se ela imagina onde poderá estar o lenço que Otelo lhe dera. Emília diz não fazer ideia. Entristecida, Desdêmona diz para criada que preferia ter perdido a bolsa cheia de cruzados, a perder algo tão importante quanto aquele lenço. O problema só não era mais grave — desabafa — graças ao amor e compreensão de Otelo, que nutre por ela de total confiança. Caso contrário, estaria em maus lençóis. Emília pergunta à Madame se o Mouro não é ciumento. Desdêmona responde que não. Nesse exato momento, Emília ouve passos e ao virar-se, vê que do fundo do corredor surge a imagem de um homem. É Otelo quem chega. A senhora responde à criada que irá insistir ainda mais para que Otelo retome sua amizade com Cássio.
Desdêmona pergunta a Otelo como ele tem passado. Disfarçando o ciúme e a raiva que sente por ela, Otelo responde que está bem. Para ele é difícil dissilumar seus sentimentos, mas com muito esforço, dá a entender que nada sabe do suposto envolvimento de sua esposa com Cássio. Para que ela não desconfie de nada, Otelo devolve-lhe a pergunta: E tu Desdêmona, como tens passado? — Bem, meu gentil marido. — ela responde. Otelo segura-lhe a mão carinhosamente, e percebe que Desdêmona está com a mão úmida — o que para ele denuncia o pecado de atos libidinosos, pensamentos impuros, traição conjugal e um coração liberal, que pertence a todos e não pertence a ninguém. Desdêmona desconversa, e diz que essa mão úmida, é a mesma que usara para entregar-lhe seu coração. Aproveitando a deixa, Desdêmona pergunta-lhe quando ele vai cumprir a promessa. Otelo disfarça e responde com outra pergunta: 'Que promessa, meu amorzinho?'. Desdêmona sem titubiar, responde que mandou que chamassem Miguel Cássio para ter com ele uma conversa. Otelo respira fundo, muda por um instante o rumo da prosa, e diz a Desdêmona que pegou um forte resfriado, que o estava incomodando muito, porcausa de uma desagrádavel coriza. E aproveitando a deixa, pede-lhe o lenço emprestado. Desdêmona empresta-lhe um lenço. Otelo pergunta onde está o lenço que lhe dera como primeiro presente de namoro. Desdêmona responde que o lenço não está ali com ela. Otelo fingindo espanto, pergunta: 'Não?!' Desdêmona responde novamente que não. Otelo não consegue disfarçar, e levantando a voz, pergunta: 'Perdeste o lenço? Está ele perdido? Fala... Não está ele contigo?'. Desdêmona exclama: 'Que os céus tenham piedade de nós!'. Otelo pergunta: 'O que dizes?'. Desdêmona responde: 'Eu digo que o lenço não está perdido. Mas, se estivesse?'. Otelo ordena que Desdêmona vá pegar o lenço imediatamente! Desdêmona calmamente responde que até poderia pegar o lenço, mas que naquele momento não o fará. E pergunta mais uma vez ao marido, quando ele receberá Miguel Cássio em seu gabinete. Otelo olha-lhe no fundo dos olhos com tanto ódio, que o universo naquele instante seria capaz de cair em ruínas, se em seus olhos tocassem. Desdêmona insiste e pergunta outra vez: 'Quando irás receber Cássio para uma conversa?'. Otelo, grita: 'O lenço!'. Desdêmona insiste: 'Suplico-lhe, falemos de Cássio'. Otelo: 'O lenço!!!'. Desdêmona continua insistindo: 'Otelo, converse com Cássio, por favor. Além de trabalhador e verdadeiro, ele é um homem que durante toda a sua vida fundamentou sua boa sorte na amizade que lhe tens, um homem que contigo compartilhou tantos perigos...'. Otelo descontrolado sai andando pelo corredor, vira-se para trás, abre os braços e grita: 'O lenço!!!!'.
Emília em pânico, pergunta baixinho à madame: 'E a senhora me diz que esse homem não é ciumento?' Desdêmona responde que jamais presenciou nada igual. E que terá que encontrar o lenço o mais rápido possível. Caso contrário provocará a ira de Otelo. Emília diz a sua senhora, que ela está casada a muito pouco tempo para dizer que conhece todas as facetas do caráter do marido. E completa: “Não é um ano, nem dois, nem três, que se conhece um homem. Tudo que eles são é estômago, e nós não passamos de comida. Eles nos comem com sofreguidão e, quando se sentem empanturrados, eles nos arrotam”.
(Entram Cássio e Iago)
Iago entra conversando com Cássio e diz que ele deve insistir ainda mais com Desdêmona para marque o quanto antes a sua conversa com Otelo.
Desdêmona aproxima-se dos dois e pergunta: 'E então, meu bom Cássio! Que novidades o senhor me traz?'. Cássio responde que gostaria imensamente de falar com Otelo. E que não gostaria de ter essa questão adiada. Desdêmona responde que Otelo anda um tanto quanto alterado, que irá ter com ele em momento mais apropriado. Mas que ele, Cássio, fique descansado, que ela fará tudo que estiver ao seu alcance para que os dois façam as pazes. Cássio pergunta-lhe se o general está zangado? Antes de Desdêmona responder, Emília fala que Otelo saiu dali a poucos instantes com o humor bastante alterado. Iago intervém e diz que se Otelo está zangado, é sinal que algo muito grave aconteceu. E diz que irá ter com ele para sondar o que está havendo. Desdêmona agradecida, implora-lhe que o faça imediatamente.
(Sai Iago)
Desdêmona diz a Emília que o motivo do nervosismo de Otelo deve ser referente a assuntos de Estado. Emília por sua vez, pede à Madame que reze aos céus para que sejam mesmo assuntos de Estado, e não pura fantasia de uma crise de ciúme. Desdêmona responde que essa hipótese é absurda, 'afinal nunca lhe dera motivos de ciúme!'. Emília responde que almas ciumentas não funcionam assim. Diz que elas nunca são ciumentas porque há uma causa, mas sim porque são ciumentas. E completa: “Este é um monstro gerado em si mesmo e por si mesmo nascido”.
Em resposta ao raciocínio de Emília, Desdêmona diz: 'Que os céus mantenham esse monstro longe dos pensamentos de Otelo!'.
Emília concorda e diz: 'Amém'.
Desdêmona apreensiva diz que irá ter com Otelo imediatamente. E pede a Cássio que não se afaste dali. Caso encontre Otelo de bom humor, falará em sua defesa, esforçando-se ao máximo para obter o resultado desejado. Cássio agradece humildemente as boas intenções de Desdêmona.
(Desdêmona e Emília retiram-se)
(Entra Bianca – meretriz amante de Cássio)
(Entra Bianca – meretriz amante de Cássio)
'Salve, meu amigo Cássio!' — diz. Cássio fica feliz e surpreso com a presença de Bianca ali. Diz que estava pensando nela naquele exato momento, e que em breve iria fazer-lhe uma visita. Bianca responde que estava dirigindo-se ao seu alojamento para matar as saudades. Afinal já não se viam a sete dias e sete noites. Cássio pede perdão por tamanha ausência, mas diz que esteve ocupado demais naquela semana, movido por pensamentos carregados. E aproveita o ensejo, retira o lenço que Otelo dera a Desdêmona do bolso, e pede a Bianca que mande fazer uma réplica. Bianca pergunta de onde vem o tal lenço. E antes dele responder, Bianca conclui que certamente o lenço deveria ser de alguma moça, que o namorado estava tentando conquistar. Deve ser por isso que ele se afastara dela por tanto tempo — argumenta. Cássio pede a Bianca que não brinque com uma coisa dessas. E jura que aquele lenço não pertence a nenhuma amante. Bianca então pergunta de quem é o lenço. Cássio responde que não sabe. Diz que o encontrou em seus aposentos. Ficou com ele porque gostou do bordado. 'Mas antes que o lenço seja requisitado de volta, como provavelmente será, gostaria de ter dele uma cópia'. Dito isto, Cássio despede-se de Bianca, suplica-lhe que providencia a réplica do lenço o quanto antes, e pede-lhe que o deixe só.
Bianca enciumada, pergunta: 'Deixá-lo! E pode-se saber por quê?'.
Cássio diz que aguarda ordens do general. E que não seria nada elegante, o general chegar ali, e vê-lo acompanhado de uma mulher.
Bianca curvando-se às circunstâncias, despede-se de Cássio e retira-se.
(Ambos saem)
QUARTO ATO
CENA I
(O mesmo cenário)
(Entram Otelo e Iago)
Iago entra conversando com Otelo e dizendo a ele que não vê mal nenhum em Desdêmona ter presenteado Cássio com o lenço. Afinal, diz, não se importaria caso Emília, sua esposa, fizesse o mesmo. 'Se eu der algo a minha esposa, esse algo passa a ser dela. Portanto se ela der para alguém, estará dando o que é dela. Lavou, tá novo!' — deduz. Otelo discorda, pois diz que isso é uma questão de honra. Uma mulher que sai presenteando outros homens, não parece-lhe a imagem de uma mulher casada e honesta. Iago rebate e diz que 'a honra de uma mulher não é medida pelas aparências, faz parte da sua essência, portanto é invisível aos olhos'. Sem perder tempo, deixa escapar que embora pense assim, acredita que neste caso em particular, parece-lhe um pouco absurdo Desdêmona ter presenteado Cássio justamente com um lenço tão importante. 'Impossível não haver mesmo algo entre eles' — deduz.
Otelo diz que gostaria muitíssimo de esquecer essa história do lenço. Mas que era impossível, dado os últimos acontecimentos. Iago venenoso que só, conta a Otelo que por acidente, ouvira Cássio contar a um subalterno que havia deitado-se com Desdêmona e com ela feito amor demoradamente.
Otelo absmado, pergunta: 'Deitou-se com ela?'.
Iago, responde: 'Deitou-se com ela, sobre ela, como o senhor quiser'.
Otelo inojado com tudo que ouviu, jura pelas feridas do Cristo, que irá vingar-se dos dois por tamanha imundície. Otelo, coitado, fica desesperado ao imaginá-los no leito, roçando narizes, orelhas, coxas, lábios, genitais, orgasmos. E grita: 'Oh, diabo!'.
(Cai em estado de estupor)
Iago olhando o corpo de Otelo esmagado no chão, resolve tripudiar mais um pouquinho. E valendo-se de seu estratagema monstruoso, pede a Otelo que se acalme, 'afinal ele não era nem o primeiro nem o último corno do planeta'. Completa dizendo que 'as mulheres que mais parecem santas, são na verdade, as piores pecadoras. E que os maridos, quase sempre enganados, tendem a ficar desesperados quando descobrem o óbvio: Sua esposas sempre foram infiéis. E indubitavelmente, o corno é sempre o último a saber. Elementar, meu caro!' — conclui.
(Iago induz Otelo a esconder-se de modo que não escute, mas os veja conversando)
(Otelo afasta-se)
Para ser fiel ao texto original, e ainda fazer jus ao brilhantismo de Shakespeare, assim como a tradução para o português do nosso Mestre Sir Philip Sidney, relato agora de forma fidedigna, o desfecho dessa tragédia:
Iago — Como vai tenente?
Cássio — Pior agora que me tratas por esse título cuja falta ainda acaba por me matar.
Iago ouvindo isso, aconselha a Cássio que continue insistindo com Desdêmona para agendar-lhe a tal conversa com Otelo. E falando bem baixinho, quase sussurando para que o Mouro não ouvisse, exclama: Se essa causa fosse passível de ser defendida por Bianca, com que rapidez teria o senhor alcançado o seu objetivo!
Cássio, diz: Ai de mim! Aquela pobre infeliz, coitadinha!
(Otelo observa e pensa que estão falando de Desdêmona)
Iago diz a Cássio que nunca viu mulher que amasse tanto a um homem. Cássio sem saber que acabara de cair numa armadilha, faz uma piada infeliz: Ai de mim! Pobre vagabunda! Penso, de fato, que ela me ama.
(Otelo observa e fica pasmo com a maneira vil que Cássio, supostamente, dirige-se a sua esposa)
Iago, continua: Cássio, escute o que tenho a dizer.
(Otelo entende que Iago esta manipulando Cássio para que conte toda a verdade)
Iago, diz: Ela tem espalhado por aí que vão os dois casar-se. É essa a tua intenção?
(Cássio cai na gargalhada)
Otelo — (Estás cantando vitória, romano? Estás contanto vitória?)
Cássio — Eu, me casar com ela! Ora, uma meretriz! Suplico-te Iago, mostra alguma condescendência para com minha inteligência! Não vai pensar que estou tão ruim da cabeça. (E cai na gargalhada)
Otelo (Ora, ora, ora. Assim riem os vencedores)
Iago, insiste: Na verdade, diz por aí que o senhor vai desposá-la.
Cássio — Peço-te um favor: fala a verdade.
Iago — Posso ser um perfeito vilão para outros assuntos, não para este.
Cássio — Isso é um boato por ela mesma espalhado.
Otelo — (Iago está me fazendo um sinal. Agora ele começa a narrar a história)
Cássio — Ela estava aqui ainda agora; persegue-me como uma sombra em todos os lugares. Outro dia estava eu na praia a conversar com alguns venezianos, quando eis que me aparece à mulherzinha e, por minha mão direita, agarra-se ao meu pescoço…
Otelo — (Gritando, “Oh, querido Cássio”, acho eu. O gesto dele dá a entender uma coisa assim)
Cássio, continua: Assim ela se dependura em mim, encosta-se em mim, derrama lágrimas sobre mim; assim ela estremece o corpo, e assim ela me afasta de si. (E cai na gargalhada novamente)
Otelo – (Agora ele está contando como ela o puxou para os meus aposentos. Ah, eu enxergo daqui esse seu nariz, e ainda hei de atira-lo aos cachorros)
Cássio, sentencia — Bem, preciso deixar de vê-la.
Iago — Diante de meus olhos! Ei-la que chega, olhe!
Cássio, responde: Assim são as vadias! Na verdade, uma vadia perfumada!
(Entra Bianca)
Cássio — O que pretende, seguindo-me dessa maneira?
Bianca — Seguir você? O que pretendia você com esse lenço que me deu ainda pouco? Fui uma boba em pegá-lo. Isto é lembrança de alguma sem-vergonha. E devo eu fazer cópia do bordado? Tome o lenço; entregue-o à sua cadela.
Cássio envergonhado, diz: Ora, vamos minha doce Bianca! Ora, vamos!
Otelo — (Pelos céus, aquele lenço só pode ser o meu!)
(Bianca retira-se)
Iago — Atrás dela, atrás dela!
(Cássio sai)
Otelo (Adiantando-se) — Como devo matá-lo, Iago?
Iago — O senhor percebeu como ele se ria do seu próprio vício?
Otelo — Ah, Iago!
Iago — E o senhor, viu o lenço?
Otelo — Aquele era o meu?
Iago — O seu, juro por esta minha mão direita.
Otelo — Eu gostaria de poder ficar nove anos assassinando esse Cássio. Uma mulher refinada! Pois ela não viverá. Não, meu coração em pedra transformou-se. Que seja enforcada! Oh… e consegue ser erudita e inteligente, e imaginativa e original…
Iago — Por isso tudo só serve para fazer dela pessoa ainda pior.
Otelo — Ah, mil vezes pior, mil vezes. Vou cortá-la em pedacinhos! Fazer de mim um corno!
Iago — Lá isso é infame da parte dela.
Otelo — Com meu oficial!
Iago — Mais infame ainda.
Otelo — Arranja-me algum veneno, Iago... esta noite. Não vou com ela discutir, para não correr o risco de seu corpo e sua beleza perturbarem ainda mais a minha mente… esta noite, Iago.
Iago — Não o faça com veneno. Estrangule-a em sua cama, o mesmo leito por ela contaminado.
Otelo — Isso. Boa ideia.
Iago — Quanto a Cássio, encarrego-me de seu desaparecimento. O senhor terá notícias por volta da meia-noite.
Otelo — Mais que bom: excelente.
(Ouve-se o tocar de uma trombeta)
Otelo — Que trombeta é essa que está tocando?
Iago — Garanto-lhe, são notícias de Veneza.
(Vamos logo para a última cena
do último ato!)
do último ato!)
Estando a sós Otelo e Iago, entram Ludovico, Desdêmona e serviçais. Ludovico vem a mando do Doge, e traz uma carta de Veneza, ordenando a Otelo que vá para o senado e passa imediatamente o governo para as mãos de Cássio. Desdêmona fica feliz com o que diz a carta e Otelo lhe bate. Ela sai chorando. Ludovico diz a Iago que ficou espantado com a cena bizarra protagonizada por Otelo. Iago aconselha Ludovico a observá-lo e notar a sequência de seus atos. Otelo chama Desdêmona no quarto e a acusa de infidelidade. Ela nega. Otelo sai. Chega Emília. Iago aproxima-se. Os dois falam com Desdêmona. Iago finge estar surpreso com a reação de Otelo. Desdêmona pede a Iago que converse com Otelo. Iago pede para que ela se acalme, pois Otelo teve aquela reação impetuosa devido a problemas de Estado. Iago convence Rodrigo a matar Cássio, argumentando que se Cássio governar, Otelo não voltará à Veneza. E levará Desdêmona à Mauritânia. Rodrigo aceita tal argumento e fica desesperado com a possibilidade de afastar-se definitivamente de sua amada. Iago diz a Rodrigo que Cássio irá jantar com Bianca, e estipula entre meia-noite e uma hora da manhã, o horário para matá-lo. Otelo sai e pede para Desdêmona esperá-lo em seus aposentos. E ordena que dispense a criada, Emília. Rodrigo ataca Cássio, mas não o fere. Cássio fere Rodrigo. Iago sai do esconderijo e fere Cássio na coxa. Iago foge. Otelo entra no quarto e conclui que Iago matou Cássio. Otelo sai. Entram Ludovico e Graciano. Iago golpeia Rodrigo pensando ser Cássio. E grita: “Assassino!”. Rodrigo morre na escuridão. Depois Iago percebe que aquele ali não é Cássio, e sim Rodrigo. E diz a todos que Bianca deve ser cúmplice de Rodrigo. E que ambos assaltaram Cássio. Cássio encontra uma carta deixada por Rodrigo, revelando toda a armação de Iago. Desdêmona dorme. Otelo entra e a acusa de infiel – dizendo que irá matá-la. Otelo sufoca-a. Emília bate na porta e ouve Desdêmona dizer que é inocente. Desdêmona morre. Emília diz a Otelo que Desdemona era fiel. Ele não acredita. Entram Montano, Graciano e Iago. Otelo diz ter sido o fiel amigo, Iago, quem lhe abriu os olhos. Emília compreende tudo, e conta-lhe que havia achado o lenço e dado a Iago. Iago apunhala Emília e foge. Emília morre. Entram Ludovico, Montano, Cássio e guardas. Iago é preso. Otelo se apunhá-la e morre. Cássio assume o governo e determina que Iago seja severamente punido por todos os seus crimes.
Graciano, tio de Desdêmona, herda o que pertencia a Otelo.
Começou a chover minutos antes do final do espetáculo. Era como se o céu pudesse prever o fim da nossa história. Naquele instante não estávamos mais bêbados. Muito menos; sóbrios. O sonho acabou e o pesadelo venceu — pensei.
Entregues ao antônimo da nossa própria sorte, ficamos todos ali parados, em silêncio, esperando a tempestade passar.
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Você é maravilhoso, Betto! A qualidade do seu texto somada ao seu seu estilo de vanguarda, me emociona! Que blog lindo! Tudo aqui é muito chic! Que homem lindo você é, Barquinn! E eu que achava que os gênios não se superavam... God save the king!!! I LOVE U!
ResponderExcluirMuito maneira essa sua releitura de Otelo! Shakespeare sentiria-se honrado! Legal também você ter criado esse enredo passado num grupo de teatro. Cara, você é 10! O que falar dos gênios senão admirá-los? Muito legal! Parabéns, meu amigo! Parabéns! Abs!
ResponderExcluirMuito estiloso você, brow! Parabéns!
ResponderExcluirAdorei!!!
ResponderExcluirMaravilhoso, Betto! Emocionante e magistral... Lindo! Bjs!
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