PETIT COMITÉ
Do you want to have love with me?
"A paciência é a mais nobre e gentil das virtudes!". (Macbeth)
Havia saído de uma família de comercial de margarina. E era difícil imaginar um mundo que não fosse cor-de-rosa. Dentro do meu mundinho perfeito, o papel de parede cobria tudo (mágoas, ressentimentos, medos, traumas, decepções). Eram metros e metros do mais puro papel de parede inglês, tapando todas as falhas da personalidade humana. Se alguém naquela casa tinha dor de barriga, cobria-se a dor com papel de parede espatulado em vinílico lavável. Se o prato do dia era a infidelidade, mais rolos e rolos do referido papel. Até o velho labrador da família, cão bravo e mordaz, recorria ao tratamento e cura dos males da alma, através do milagroso papel importado. Ali gastava-se tanto papel, que somados todos os metros usados diariamente, daria para dar a volta ao mundo. Da lua, é claro.
Papai, um velho bonachão que se orgulhava de ter nascido com aquilo roxo, a mais de vinte anos representava Macbeth no melhor teatro da cidade. Mamãe, a eterna Lady Macbeth, vinha representando a mesma personagem tão bem e a tantos anos, que às vezes se confundia entre o ser e o não ser — ela mesma. Meus pais eram as celebridades mais festejadas que uma cidade do interior, brega e sem coração, pode almejar. Representar "The Scottish play" era um caso de vida ou morte naquela família. Lá em casa o mundo girava em torno desse clássico. Comia-se Macbeth. Bebia-se Macbeth. Matava-se ou morria-se por Macbeth. Morar com eles era como viver entre a lente e o flash de uma máquina fotográfica. Ou melhor, era como viver com o pescoço permanentemente abaixo da guilhotina. Ou para ser mais exato, era ter um revólver apontado para a sua cabeça — fazendo amor na mira de um fuzil. Um simples café da manhã, e de repente…cheers! Tudo era uma grande comemoração. De manhã, fotos para uma revista de moda. No almoço, fotos para uma revista de culinária erótica. À tarde, fotos para uma revista sui generis. E à noite, festa! Nessas festas tirava-se tantas fotos, de tudo e de todos ao mesmo tempo, que um dia colocaram a empregada da família na capa de uma revista GLS, dizendo que ela era a cover oficial da Drag Queen que imitava a condessa da Escócia. Essa cena foi hilária!
Acontece que realmente havia chegado essa tal condessa na nossa cidade, vindo premiar os cantores da Companhia de Ópera Municipal (barítonos, tenores e contratenores) e as cantoras (contraltos, mezzo-sopranos e sopranos), além dos artistas do corpo de baile, músicos, cenógrafos, iluminadores e figurinistas, com a medalha “Honra ao Mérito de Edimburgo”, pelos excelentes serviços prestados em intercâmbio, com o povo escocês. Papai e mamãe também receberiam a tal medalha. O motivo ninguém sabia... Mas eles ganhavam tanta coisa, de penico usado à dentadura velha, que resolveram premiá-los também por isso. Mamãe que nem sequer sabia onde ficava a Escócia, muito menos Dùn Èideann, revirava o móvel da sala com as mãos sujas de sangue, apunhalando as gavetas atrás do Mapa Mundi. Papai, mais viajado, sempre ligado em geografia, fumava um de seus charutos cubanos no jardim, certo de que Fidel Castro não era escocês. Então o que Fidel Castro tinha haver com isso? Nada. Era só mais um dia confuso na cabeça do meu pai. Enfim, os dois estavam mais perdidos do que cego em tiroteio, declamando sonetos de William Shakespeare, caminhando em sapatilhas de ponta, contando as rugas um do outro no espelho renascentista da sala de jantar. Eles sempre se comportavam assim quando tinham um prêmio à receber. E dessa vez, que nem sabiam que prêmio era aquele, nem onde ficava a Escócia, temiam cometer alguma gafe na frente da rainha, quer dizer, condessa. Tá vendo, até eu estou nervosa! Onde fica a Escócia pelo amor de Deus?! Well… Deixa eu voltar a tal história... Bem, depois de tanta correria, ficou tudo pronto para a festa. Carruagens e mais carruagens paravam à nossa porta, cheias de personagens de Contos de Fadas. Todos os grandes eventos do país aconteciam no quintal da nossa casa. Desde a posse presidencial à uma simples partida de Bridge. O povo era convidado a vir e ficar nos arredores, acompanhando o burburinho. Traziam suas cestas de piquenique e passavam o dia respirando a poeira da estrada com cheiro de bosta de cavalo. E assim passavam a vida, vendo a alma esfarelar em forma de convescote.
Eis que então, chega a condessa da Escócia, vestida de samambaia chorona, de um verde tão verde, que ofuscava os olhos. Todos se curvaram em reverência a vossa “majestade”, muitos choravam abanando lencinhos brancos para a Dama da Corte, outros vomitavam nos próprios genitais, felizes de estarem entre membros tão distintos da nobreza européia. A condessa após passar pelo red carpet com pose de rainha da Inglaterra, fez amor com todo mundo, fumou charuto com cachaça, beijou o retrato de Macbeth pintado à óleo por papai, fez um despacho na encruzilhada, comeu frango de macumba, chutou uma oferenda, rodou a baiana, tirou a roupa, dançou nua em cima de um burro xucro, defecou no meio do salão, deu um pulo numa perna só, duas cambalhotas, e caiu morta na mesa de vidro da sala de jantar. Para encurtar a história, com a mulher ali caída, estrebuchando feito uma porca, não haveria a premiação e nem os festejos da Semana das Artes de Edinburgh. Todo o corpo militar estava presente. O povo enfileirado esperando o desfile. Mamãe e papai, nervosos, disfarçavam uma forte diarreia com uma rolha enfiada sabe-se lá onde. Enfim, o caos estava armado. Pânico instituído, resolveu-se falar com o presidente. O presidente falou com o ministro, que recorreu ao deputado. O deputado falou com o senador, que recorreu ao padre. O padre falou com o Bispo, que recorreu ao Papa. O Papa coitado, sofrendo de uma hemorroida inflamada à dias, disse ao Bispo que falasse com o padre, que dissesse ao senador, que pedisse ao deputado, que mandasse o ministro falar com o presidente, que colocasse outra mulher no lugar da condessa, e continuasse a festa. Severina Vaisefudel, nossa governanta alemã, nascida na Paraíba, era a que mais se encaixava no papel. Com physique du rôle para tal empreitada, encarnou o papel da condessa dos Quintos dos Infernos, por três luas e três sóis. Sendo assim, foi parar na capa de todas as revistas rurais do mundo — com direito a tiara de brilhantes e anel de diamantes presos ao focinho. Só depois de um mês após encerrarem-se os festejos culturais, é que foi divulgado o passamento da tal condessa da Escócia, mesmo sabendo que ela já estava morta e enterrada, a muito tempo. “Assim é a vida” — disse mamãe. “Há de seguir o cerimonial. A vida não tem script. Por isso o espetáculo não pode parar. Se é para chorar – a gente chora. Se é para rir — a gente ri. Depois dos aplausos e de várias camadas de demaquilante, abaixa-se o ‘pano-de-boca’. É a vida que segue. Afinal, há de seguir o cerimonial”.
Quando meus pais morreram, eu achava que estava perdendo tudo. Abandono afetivo. A vida foi embora. O cachorro fugiu. E agora… Quem vai cuidar de mim? Por que a vida está falando comigo como se eu fosse adulta? O combinado não era que eu fosse Peter Pan a vida inteira? Peter Pan Feat.Michael Jackson — Childhood. Assim eu cresci, aprendendo a representar até debaixo d'água. Vivia entre os testículos do papai e os textículos da mamãe. Horas aplaudindo. Horas sendo ovacionada. A vida sempre foi um entra e sai de personagens na minha vida. Um episódio infinito atrás do outro. Cena após cena. Living with Michael Jackson in Neverland.
Certa vez, fui expulsa do colégio de freiras, só porque descobriram que meus pais eram artistas. Naquele colégio, eu era a refeição predileta dos padres e das freiras. “Adoro comer uma quentinha” — dizia meu padre confessor, toda vez que arrancava a minha calcinha com os dentes. Enquanto isso – eu chorava. Para quem viveu naquele antro de perdição, ser excomungada foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Essa foi a única vez que a igreja me ajudou. Mulher de vida fácil?! Ninguém sabe o duro que eu dei… Passaram-se muitos anos desde a infância até aqui. Ânus que mudaram a minha visão do paraíso. Meu mundo cor-de-Rosa, ruiu. “Meu mundo caiu”. Hoje vivo mais num mundo em branco e preto. Desbotado talvez, mas muito mais verdadeiro do que aquelas Histórias da Carochinha — que minha família contava. Agora sou essa mulher remendada até os ossos. E não há estrada de tijolos amarelos, nem “The Wonderful Wizard of Oz”, nem Dorothy, que me faça voltar.
Hoje cheguei em casa feliz da vida, joguei as chaves do Lamborghini na mesa da sala, tirei a calcinha e respirei profundamente. A vida tem me dado muitas provas da sua lealdade. Tenho muita fé na vida e levo meus santos de devoção presos à alma. E é essa alma e essa fé que me impulsionam. Sei que nada é fácil nessa vida. Vivi problemas enormes. Tenho cicatrizes tão profundas, em lugares tão profundos, que é preciso tatear o espírito na escuridão, para sentir a extensão dos meus danos. Mas isso não me impede de ser feliz. Nasci, afinal, num planeta de provas e expiações. Já me dei conta a muito tempo, que a felicidade por aqui é algo que vai e vem, com o peso de um grama. Lady Macbeth, incorporada em mamãe, dizia que quando a felicidade acontece, devemos agarrá–la como a um recém-nascido. Forte, ágil, com responsabilidade e com muito amor. A vida é um avião sem combustível. Há de se saber a hora certa de aterrissar para se achar o abstrato numa realidade concreta. Às vezes a vida se apresenta de forma tão minimalista, que a gente não percebe que a vida é a vida. Assim acontece com o amor, a morte, e tudo o mais que nos apodrece. Viver é reduzir, reaproveitar e reciclar. Não vou passar a vida tentando aferir vantagem ilícita sobre o patrimônio da humanidade. Prefiro viver meus projetos de sustentabilidade emocional, respeitando a todos, sem prejudicar a ninguém. Afinal, o problema de se olhar no espelho, é que o espelho nos olha de volta. Já disse o poeta: “De perto ninguém é normal”. Hoje estou mais para as coisas intangíveis do que para as tangíveis. Uma mulher e um rechaud a beira do abismo, esperando o dia que sucede o fim. Filosófico demais para a minha cabeça. Grande demais para a minha vagina. Grosso para a sua, talvez. Profundo demais para nós dois encararmos esse oceano. Mas sei que há quem nos entenda. Talvez um daqueles que viva por fisiologia, por segurança, por indulgência ou para mostrar ao outro que vive. Sei lá... Eu vivo para escrever. Os livros da minha estante vivem para me aconselhar. O livro é o alimento da humanidade. Por isso devoro e sou devorada por ele. Sentimentos ortônimos e heterônimos. Sou uma mulher expatriada que vive para viver. O terrível é não ter um lugar onde morrer. Macbeth. Petit comité. Não vim aqui à passeio… Sou uma mulher repartida em pedaços. Uns grandes. Outros pequenos. Talvez.
Sou uma mulher. Apenas uma mulher. Uma mulher. Talvez. Nice dreams, my love. I'm a woman. I'm a gypsy. Maybe.
“Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes”.
(William Shakespeare)
CONTACT BETTO BARQUINN:
PETIT COMITÉ © copyright by betto barquinn 2010
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS BY BETTO BARQUINN
Betto, profundo esse texto. Tirei várias conclusões filosóficas ao lê-lo. Você conseguiu me deixar sem palavras mais uma vez. Você adora virar e revirar o texto pelo avesso. Me lembrou uma palestra que assisti na USP da Marilena Chauí. Fantástico, Betto. Parabéns!!!
ResponderExcluirQue texto maravilhoso, Bettinho! Muuuuuuuuuuuuito legal! Você é o cara mais interessante, genial, FODA, talentoso e lindo que eu conheço. Esse seu talento para as artes ainda vai te levar muuuuuuuuuuuuito longe, meu amor. Que delícia de homem, você Betto! Que delícia!
ResponderExcluirBetto, você tem estilo! A muito tempo que eu não lia algo tão bacana. A maioria dos blogs só tratam de bobagens. E esse seu, meu caro, é um paraíso literário. O brasileiro comum não gosta de ler e isso é uma pena. Devemos criar o hábito da leitura desde pequenos. Um blog como esse seu, deveria ter centenas de leitores. Um absurdo as pessoas não prestigiarem como deveriam um autor como você. Você é um obstinado. Fica claro neste conto que escrever para você é uma missão. E como você transcorre naturalmente no universo feminino! Maravilhoso! Deve ser difícil para um homem escrever tão bem sobre a mente de uma mulher. Eu fico todo arrepiado ao me atrever em pensar no assunto. Abusado você, Betto Barquinn! Rs! Aí está a prova do seu talento! Que você é um gênio, qualquer um que te conheça um pouco, já percebe isto. Seus textos tem alma e humanidade. Dá para perceber o carinho com que você trata os seus personagens. Tudo que você escreve é muito humano. Dá até para sentir a respiração, o perfume, o gosto dos seus personagens. Tenho certeza que esbarramos todos os dias nos seus personagens pelas ruas. Aqui você apresenta uma mulher comum. Igual a todas as outras. E por isso mesmo - ímpar. Delicioso o seu blog, Betto. Parabéns, meu Rei!
ResponderExcluirOi querido! Betto, que conto lindo! Amei, amado. Beiju!
ResponderExcluirManeiro esse conto, Betto! Parabéns!
ResponderExcluirOi lindão! Quem já te viu atuar, sabe que você vira um deus quando está em cena. Um arraso! E eu, que já tive o privilégio de viver essa experiência maravilhosa, sei que partindo de você, só o melhor acontece. Que conto lindo, Betto! Você está escrevendo cada vez melhor, meu amor! Seu talento vai além das frontreiras desse mundo, gatinho. Além de ser um homem lindo, ator formidável, percebo que também é um escritor excelente. Parabéns, amigo! I LOVE YOU!!!
ResponderExcluirManeiro demais esse conto, Betto. Parabéns!
ResponderExcluirOi Betto Baquinn! Recebi um mailing com uma lista de blogs de literatura e fiquei encantada com o seu blog. Amei esse conto, Betto. Querido, você escreve muito bem. Falar de uma peça tão impactante como Macbeth e junta-lá à psiqué humana foi um tacada de mestre. O sofrimento da personagem, o amadurecimento dela, pais que representam Macbeth e Lady Macbeth, citação de Fernando Pessoa, fotos, vídeos,... Sheakespeare, o maior dramaturgo de todos os tempos, certamente aprovaria a sua intervenção artística! Rs! Maravilhoso! Tudo aqui é pensado de forma à prender a atenção do leitor. Um mixto de ciberliteratura, blog, site... Adorei! Parabéns, Betto! Um beijo da sua nova fã, Lilian Guimarães.
ResponderExcluirLindo, amado! Parabéns!
ResponderExcluirOi colírio! Seu blog está cada vez melhor, gato. Sucesso!!!
ResponderExcluirAdorei o texto, lindão. Beijos!
ResponderExcluirVocê é o tipo de pessoa que sabe o que faz. Esse conto é de uma genialidade ímpar. Parabéns!
ResponderExcluirCara, vc escreve muito bem!
ResponderExcluirAmei!
ResponderExcluirLINDO CONTO BETTO! PARABÉNS!
ResponderExcluirEstou encantada com o seu talento, meu lindo. Bjs!
ResponderExcluirSensacional!!!
ResponderExcluir