CHRONOS E KAIROS
Mesmo com o coração partido, o meu pulso ainda pulsa.
Chronos chegara em casa com Roberta Flack embrulhada para presente. Havia comprado o CD por impulso, mesmo sem saber quem era aquela mulher, que cantava, entre outras coisas: "You've got a friend". Ficou largos minutos olhando-se no espelho da sala, procurando respostas para perguntas que jamais fizera. Chronos sabia que estava envelhecendo. Sabia que tinha perdido nesta vida mais do que tinha ganhado na outra. Uma sucessão de perdas com dia e hora marcada. Primeiro os pais, depois os avós, depois o gato, depois o amor, depois a mulher, depois os filhos, depois Michael Jackson, depois José Saramago, depois e depois. Quanta tristeza… Tudo em sua vida havia ficado para depois. Havia se preocupado tanto em permanecer vivo, que perdeu a vontade de viver. Tinha dias que mal conseguia levantar da cama. Dias que pareciam anos. Sentia calafrios em lugares que nem sequer estavam no seu corpo. Era como se a alma houvesse saído para comprar cigarros e nunca mais tivesse voltado. Esperava por si mesmo, todas as tardes, no portão de casa. Um dia esperava com flores do campo. No outro, aguardava sentado na escada — com um buquê de rosas na mão. Passava semanas e mais semanas pensando o que falaria para si mesmo quando chegasse a hora. Já havia se passado cinco anos desde que partira — para nunca mais voltar. Mas mesmo assim, esperava. Passava o tempo vivendo a nulidade do não ser. Hoje mesmo, acordara tão velho, que parecia que tinha deitado e esquecido de morrer. Seu prazo de validade estava tão vencido, que se levantasse os braços para o céu, alguém o puxaria lá para cima. Mas Chronos não era homem de fazer tsunami em copo d' água. E dizia: "Se o tempo é bom e o vento ajuda, com o sonho de Ícaro, nada bobo que sou, bato as asas e voo".
Enquanto isso, Luiz Gonzaga canta: "A Triste Partida".
Difícil imaginar um corpo sem alma caminhando por aí. Por isso Chronos tinha tanto medo de morrer. Afinal, um corpo sem alma, não pode mesmo viver. Mas enquanto a alma não voltasse a habitar o corpo, o que lhe restava — era esperar. Vivera abraçado ao medo por tanto tanto, que agora tinha medo que o medo o deixasse sozinho. O pior da síndrome do pânico, é quando ficar em casa, torna-se mais doloroso que sair. A gente sonha coisas que o pesadelo não esquece. O essencial é invisível aos olhos. "Então o não querer torna-se parte de tudo que somos" — pensou. Até porque depois do pecado original, a solidão virou o último grito da moda. E Chronos, um homem poluído da nascente ao envase, jamais poderia imaginar que a essa altura da vida, viveria ao mesmo tempo, as trinta e sete peças de Shakespeare. Um segundo devora um segundo inteiro. Um minuto devora um minuto inteiro. Uma hora devora uma hora inteira. Um dia devora um dia inteiro. Uma semana devora uma semana inteira. Um mês devora um mês inteiro. Um ano devora um ano inteiro. Uma década devora uma década inteira. Um século devora um século inteiro. Muito poucos vivem um século inteiro. Donde se conclui que uma vida devora uma vida inteira. A recompensa pelo que fazemos nos espera mais adiante. Ninguém foge da justiça de Deus.
Quanto mais vidas eu tivesse, mais vidas por ti, eu daria.
Kairos chegara em casa com Carmen Miranda embrulhada para presente. Havia comprado o CD por impulso, mesmo sem saber quem era aquela mulher, que cantava, entre outras coisas: "Sonhei que era feliz". Ficou estreitos minutos olhando-se no espelho da sala, procurando respostas para as perguntas que sempre fizera. Kairos sabia que estava rejuvenescendo. Sabia que tinha ganhado nesta vida mais do que tinha perdido na outra. Uma sucessão de vitórias com dia e hora marcada. Primeiro os pais, depois os avós, depois o gato, depois o amor, depois a mulher, depois os filhos, depois Aretha Franklin, depois Simone de Beauvoir, depois e depois. Quanta alegria… Tudo em sua vida havia acontecido no momento certo. Havia se preparado tanto para ser feliz, que multiplicara a vontade de viver. Todos os dias levantava da cama com o sorriso nos lábios. Dias que pareciam infinitos. E a felicidade era tanta, que sentia cócegas em lugares que nem sequer estavam no seu corpo. Era como se a alma houvesse saído para fazer compras e tivesse voltado para casa cheia de presentes. Recebia a si mesmo todas as tardes no portão de casa. Um dia esperava com flores do campo. No outro, aguardava sentado na escada — com um buquê de rosas na mão. Passava horas e mais horas pensando o que falaria para si mesmo quando a felicidade findasse. Já havia se passado cinco anos desde que a felicidade chegara — para nunca mais partir. Por isso, comemorava. Passava o tempo vivendo a grandiosidade do ser. Hoje mesmo, acordara tão jovem, que parecia que havia levantado e esquecido de colocar as fraldas. Seu prazo de validade estava tão longe do fim, que se levantasse os braços para o céu, alguém o empurraria lá para baixo com uma chupeta na boca. Kairos era homem de fazer festa por qualquer coisa. Tudo em sua vida era um bom motivo para comemorar. E dizia: "Se o tempo é ruim e o vento atrapalha, mesmo assim, com o sonho de Ícaro, nada bobo que sou, mexo as pernas e vou".
Enquanto isso, Celia Cruz canta: "La vida es un carnaval".
Fácil imaginar um corpo com alma caminhando por aí. Por isso Kairos tinha tanta vontade de viver. Afinal, só um corpo com alma, é que permanece vivo. E enquanto a alma habitasse o corpo, o que lhe sobrava — era vida. Vivera abraçado à esperança por tanto tempo, que agora tinha mais esperança que a própria esperança. Quando se espera da vida apenas coisas boas, nenhum obstáculo é tão grande, que não se possa ultrapassar. A gente sonha coisas que o sonho não esquece. O essencial faz parte do espírito. "Então o bem torna-se parte de tudo que somos" — pensou. Até porque depois do perdão, a felicidade virou o último grito da moda. E Kairos, um homem purificado da nascente ao envase, jamais poderia imaginar que a essa altura da vida, viveria ao mesmo tempo, as trinta e sete peças de Shakespeare. Um segundo alimenta um segundo inteiro. Um minuto alimenta um minuto inteiro. Uma hora alimenta uma hora inteira. Um dia alimenta um dia inteiro. Uma semana alimenta uma semana inteira. Um mês alimenta um mês inteiro. Um ano alimenta um ano inteiro. Uma década alimenta uma década inteira. Um século alimenta um século inteiro. Muito poucos vivem um século inteiro. Donde se conclui que uma vida alimenta uma vida inteira. A recompensa pelo que fazemos nos espera mais adiante. Ninguém foge da justiça de Deus.
O cano sujo, de tanto passar água limpa, também acaba se limpando.
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Oi Bettinho! Adorei esse conto novo! O seu interesse por filosofia está cada vez mais latente. Toda vez que converso com você, acabo sabendo mais sobre o assunto. Estou lendo aquele livro do Santo Agostinho que você me emprestou. Muito bom o livro, querido. A leitura do livro serviu para entender as nuances do conto CHRONOS E KAIROS. Você trabalha sobre as questões do tempo com uma delicadeza incrível. Gosto muito do seu trabalho, querido. Seus textos são de uma profundidade inenarrável. Parabéns, amado! Beijos!
ResponderExcluirOi Betto! Blz?! Brother, adorei esse conto! As pessoas reclamam o tempo todo de tudo, mas se pararem um segundo para pensar, perceberão que temos inúmeras possibilidades para sermos felizes. Você sempre diz que felicidade é isso, amigo: “Um tijolinho colocado dia a dia na nossa construção”. Você é um espírito encantador, Betto. FELICIDADES!
ResponderExcluirMinha amiga, Renata, me falou do seu blog, aí passei pra conferir. Adorei esse conto, cara! Coisas aqui pensadas sobre o tempo, são de tal forma envolventes, que transformam esse texto num tratado histórico. Fiquei muito contente em conhecer o seu trabalho e ver que realmente os elogios por minha amiga tecidos, são mais do que verdadeiros. Vou acompanhar o dia a dia desse blog, louco para ler mais textos seus. Que bom que aqui tem vários!!! Abs!
ResponderExcluirCaro Escritor,
ResponderExcluirNão conhecia o teu trabalho e pesquisando por blogs literários na internet, acabei encontrando os teus textos. Sou professora de português do Ensino Médio aqui na minha cidade, escrevo de Curitiba, e não imaginas a gratidão que tenho por ti, por simplificares a minha busca. Estava justamente procurando por um conto como este, para dialogar com meus alunos sobre o tempo. Filosofia é matéria que está em todos os momentos das nossas vidas. E os alunos sentem muita dificuldade de falar sobre o tempo de forma mais abrangente. Adorei conhecer o teu trabalho e chegar num material excelente. Teu talento para a escrita e a facilidade com que brincas com as palavras é um Dom. Sem sombra de dúvidas, és um dos maiores intelectuais da nova geração de pensadores brasileiros. Enviei um pedido formal por e-mail, mas gostaria de acentuar por meio deste, o meu desejo de utilizar o teu conto em sala de aula. Aguardo o vosso contato.
Com o coração tranquilo,
Grata,
Maria Helena Volcherick.
Amei esse conto Betto! Além de excelente ator, você ainda consegue se superar, e se apresentar também como excelente escritor. Você, além de lindo, é o cara mais bom caráter que eu conheço. Que talento, gato! Beijú!
ResponderExcluirGenial, Betto! Adorei!!!
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